quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

As duas faces da crise



O ano que ora se encerra parece destinado a ser avaliado a partir do espectro da crise.

A tendência analítica prevalecente destaca a crise financeira que assola o mundo como dotada de gravidade e profundidade suficientes para ameaçar o pouco que havia de otimismo e sugerir que ingressamos em uma fase na qual o capitalismo está novamente desafiado a reiterar sua autoproclamada racionalidade. Reconhece-se, aqui, a natureza eminentemente incerta e “imprevisível” do sistema capitalista, que a cada ciclo parece maximizar os elementos de risco e anarquia inerentes à sua estrutura de produção.

Este viés dominante embute um outro. É que, sendo a crise de “proporções históricas”, ela não só criaria dificuldades para a reprodução organizada da vida como também abriria oportunidades para a inovação, a revisão de convicções e a reprogramação do futuro. Afinal, todo processo carrega consigo problemas e soluções, falências e novas oportunidades. Não só de dor e sofrimento é feita a história.

Mas crises são crises, e nem sempre a criatividade que as acompanha mostra-se de imediato, de modo automático. Crises só são espaços de invenção quando encontram circunstâncias particularmente favoráveis, que agregam pessoas e despertam vontades desativadas, pondo-as em movimento. Requerem também atores qualificados para traduzir e potencializar tais circunstâncias, de modo a extrair o máximo delas.

Neste ponto, ingressamos num território confuso e controvertido, pois é consensual que vivemos num tempo refratário a mobilizações coletivas e à emergência de lideranças políticas maiúsculas. Além do mais, a própria explicação da crise divide as pessoas em múltiplos campos, que não se reduzem à dicotomia otimismo vs. pessimismo, embora estejam atravessados por ela.

Enfatizar o lado mais sombrio da crise tanto pode expressar um prudente brado de alerta contra os que banalizam e minimizam seus desdobramentos, quanto ter um efeito paralisante, que bloqueia o encontro de saídas e adaptações. Efeitos paralisantes deste tipo não conhecem ideologias; podem ser de esquerda ou de direita, quer dizer, podem explorar de modo invertido um arcabouço ideológico inspirado na idéia de que somente seria possível conceber um mundo “sem crises” se se vivesse em um outro mundo, inteiramente diferente do atual – um novo mundo, que viria na esteira ou de uma “revolução em nome da ordem”, pela direita, ou da completa subversão da ordem existente, pela esquerda.

A ênfase no lado sombrio da crise também pode ocultar estratégias de intimidação, com as quais se proporiam soluções autoritárias ou providenciais, na linha de que situações difíceis exigem soluções amargas e “chefes” especialmente dotados.

Já os que se dizem tranqüilos e “confiantes” diante da crise não são necessariamente sinceros. Alguns talvez desejem contrariar a rational choice e incentivar as pessoas a não cederem diante das dificuldades para não aumentá-las ainda mais. Outros podem manifestar confiança na capacidade que teria o sistema de se auto-regular ou simplesmente revelar algum tipo de cegueira diante da realidade, um tipo de antolho ideológico ou alienação. Tanto podem mobilizar energias coletivas adormecidas quanto impulsionar taras conservadoras. Podem servir para que se cristalizem fés fanáticas no sistema ou para que se recuperem velhas utopias, como a do mercado auto-regulável ou do Estado todo-poderoso.

Entre uns e outros, inserem-se os realistas autênticos, que trabalham para que as circunstâncias existentes se traduzam em uma teoria da ação que faça história e produza transformações em cadeia, isto é, dispostas progressivamente em um círculo espaço-temporal concatenado, no qual cada alteração, cada reforma, cada medida positiva, seja a plataforma para novas medidas ainda mais profundas e contundentes.

Momentos como o atual preparam o palco para que políticos e intelectuais realistas exibam seu estoque de recursos, mostrem-se à altura, equacionem os problemas na medida mesma da gravidade deles. É em momentos assim que surgem os estadistas, os grandes políticos, aqueles que dialogam com as massas mas não se negam a contestá-las, que não são paternalistas, mas generosos e ousados. É neles que os intelectuais deixam-se agitar pela urgência cívica, põem-se uma agenda teórica aberta e elaboram novos paradigmas.

À primeira vista, os dias atuais não parecem reunir condições para que se generalizem tais posturas realistas. A reorganização hipercapitalista a que o mundo está sendo submetido carrega no ventre um cenário embaçado e preocupante, simbolizado pela corrosão dos talentos políticos e intelectuais, pela desmontagem dos arranjos coletivos com que se protegiam as sociedades, pelo esvaziamento das instituições e pela subversão dos circuitos espaço-temporais que forneciam parâmetros para a vida.

Devemos, porém, pensar o tema com os olhos para frente. Se é verdade que o capitalismo turbinado das últimas décadas tem sido devorador da sociedade – estilhaçando a vida coletiva e roubando protagonismo dos grupos em benefício dos mercados – também é verdade que ele manteve ativa a dimensão estrutural e subjetiva do conflito, da contradição, da luta pela vida. A sociedade não morreu, somente foi redefinida. A política não desapareceu, somente foi desorganizada e posta em um plano mais técnico que ético, que não emociona nem inspira confiança.

Por sua gravidade e contundência, a crise pode forçar a que certas coisas voltem ao devido lugar. Há indícios de que algo novo começa a surgir nesta direção. E não deixa de ser uma excelente promessa de fim de ano nos comprometermos todos, cada um a seu modo, a brigar para que 2009 escape da mesmice, das fórmulas conhecidas, das frases feitas, do fanatismo ideológico e das posturas servis de conveniência. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 27/12/2008, p. A2.]

domingo, 23 de novembro de 2008

O efeito Obama



A eleição de Barack Obama para a Presidência dos Estados Unidos já foi submetida a todo tipo de avaliação. Porém, como todo fato histórico, continua a desafiar os analistas.

Foi sem dúvida o principal acontecimento de um ano sacudido mais pela crise financeira internacional do que por fatos políticos particularmente expressivos. Terá força para repor a política no centro da vida e das atenções, ao menos nos Estados Unidos? Muito se falou da dimensão simbólica da vitória de Obama. Um negro, que veio de baixo, um político formado por Harvard, estranho às aristocracias políticas norte-americanas, não poderia mesmo deixar de produzir impacto, despertar emoções, dar esperança a milhões de pessoas que se sentem derrotadas e humilhadas, que ainda se lembram do apartheid racial que devassou a convivência e a dignidade humana dentro e fora da nação tida como “pátria da Liberdade”. Mas Obama também incendiou os jovens e conseguiu assimilar o eleitorado feminino que torcia por Hillary Clinton. Estabeleceu empatia com todos os setores da sociedade americana. Foi emocionante ver as multidões que o saudaram em Chicago e comemoraram sua vitória em várias partes do mundo. Num momento de refluxo no envolvimento com a política, a centelha de mobilização que acompanhou Obama merece no mínimo um acompanhamento cuidadoso.

Dado o peso dos Estados Unidos, tudo o que ali acontece pode repercutir no modo como se vive no mundo. Mas não em termos imediatamente econômicos, pois parece difícil que se consiga, pelo efeito mágico de um gesto, estancar de imediato a crise financeira, modificar a predisposição consumista das massas e arrefecer o afã desenvolvimentista que grassa forte neste início de século. Consumismo desenfreado e crescimento econômico a qualquer preço são duas das principais pragas da modernidade, e a elas devemos imputar boa parte das mazelas com que convivemos. Trocar consumo e desenvolvimento por investimentos sociais, por democracia, igualdade, respeito ao meio ambiente e desaquecimento, não é seguramente operação simples. Requererá décadas de empenho político, criatividade e reeducação.

Obama não tem como nos fornecer isso, mas pode agir como catalisador. Pode, por exemplo, repor na cena política uma agenda progressista, voltada mais para a população do que para a economia, ainda que sem abandonar a convicção de que é preciso ajudar os mercados a sair da lambança em que se meteram. Voltar-se para a população significa fazer o governo funcionar para promover as pessoas, provê-las de serviços e suportes que as façam crescer e viver com dignidade. Obama pode ajudar a que se passe a ver o bom governo como aquele que colabora para que se tenha boa vida, não tanto boa economia. Pode ser uma diferença sutil, mas não deixa de ser decisiva. Dar-se-ia o mesmo na frente administrativa. Uma guinada progressista de Obama jogaria por terra o palavrório insosso do “choque de gestão” e do Estado mínimo.

Muitos manifestaram preocupação com o protecionismo do Partido Democrata e do próprio Obama, que desde a campanha sempre se manifestou favorável aos interesses de seu país. Os que não gostaram disso pareciam querer que o novo presidente governasse para o mundo e para os países mais pobres. O protecionismo democrata é tradicional. Sempre existiu e sempre existirá, especialmente em momentos de crise aguda, como o atual.

Uma eventual agenda progressista de Obama não abandonará o protecionismo, e não fará isso por vários motivos. Mas poderá contribuir para que se criem novos canais de negociação, novos relacionamentos comerciais e novas modalidades de cooperação e ajuda internacional. Se for assim, será um passo de gigante.

Não houve quem não lembrasse que uma coisa é o discurso de campanha, outra coisa é a prática efetiva do governo. Trata-se de uma lembrança oportuna, ainda que óbvia e elementar. Todo governante eleito vive tal situação, mesmo aqueles que prometem pouco e se apresentam como técnicos ou “gerenciais”. Campanha e governo implicam lógicas distintas, condutas e discursos específicos. O importante é compreender como o candidato se prolonga no governante. Política e governo são sempre um ator e certas circunstâncias. Faz-se o que se pode, não o que se deseja fazer. Mas sempre dá para ligar o desejável e o possível, graduá-los e equilibrá-los, de modo a que a prática dura e fria do governo contenha uma dose de fantasia e facilite às pessoas a continuidade de uma esperança. Obama enfrentará dificuldades enormes para transformar em fatos muitos de seus compromissos de campanha. Mas poderá fazer com que seus recuos e fracassos se convertam em fatores de mobilização para novas tentativas futuras.

Obama tem tais condições porque representa um sopro de renovação e vem embalado pelo entusiasmo das multidões. Sua legitimidade mistura respeito racional-legal e adesão ao carisma do líder. Representa o negro pobre e o branco liberal, o branco atingido pela crise e o negro progressista, a classe média que se empobreceu e as elites democráticas, os jovens, os mais velhos e as mulheres de todas as etnias.

Torcer por seu sucesso, e admitir que ele possa acontecer, não autoriza ninguém a se pôr diante dele com a ingênua expectativa de que tudo agora será diferente. Obama não trará o céu à terra até mesmo porque não se comprometeu com isso. Não é anticapitalista nem reformista convicto, menos ainda um socialista moderado. É somente um político jovem, talentoso, pragmático e determinado, em cujas veias parece correr o sangue secular do que há de melhor na sociedade americana. Mais que um sonho, ele expressa o fim de um pesadelo, a era Bush. Pode não ser suficiente, mas é sem dúvida muita coisa. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 22 de novembro de 2008, p. A2]


sábado, 25 de outubro de 2008

A cidade e seu futuro


O prefeito de São Paulo a ser eleito em 2008 estará chamado, como o foram todos os seus antecessores, a governar uma cidade que é um enigma a ser decifrado e uma potência a ser controlada. Se desejar inscrever seu nome na história, terá de ir além de rotinas e procedimentos-padrão, ser mais que administrador, coordenar mais que comandar.

Trata-se de algo universal. Estima-se que mais de 50% da população mundial vivam em cidades. Elas crescem por toda parte, transbordam seus centros e espalham-se pelas periferias, desafiadoras. Impõem-se como arranjos implacáveis, que “civilizam” sem piedade, redefinem perfis e padrões, sufocam outros modos de ser. Todas as grandes decisões políticas e culturais são tomadas em cidades e estão nelas os principais núcleos geradores de vida moderna.

Vivemos sempre mais em cidades, mas elas são cada vez menos polis. Continuam a nos seduzir, mas não mais nos concedem um estilo de vida desejável. As cidades do nosso tempo estão se convertendo em amontoados de pessoas e não conseguem fornecer, a seus moradores, condições de usufruir as vantagens da aglomeração: o encontro, a diversidade, o aprendizado da diferença e do respeito pelo outro, a luta coletiva. Em muitos momentos, assemelham-se a praças de guerra, teatro de batalhas inglórias, de um corpo-a-corpo travado com armas que vão da faca e do revólver à agressão verbal, à chantagem emocional, à ausência de cortesia e delicadeza, à indiferença. Massas de excluídos, sem-teto e desempregados perambulam quase a esmo, em meio a “incluídos” fechados em si e carentes de uma idéia de futuro. São Paulo não é exceção.

São assombrosas as dificuldades para que se reformem as cidades. A política só se ocupa delas como objeto de gestão, não de convívio, mais como espaço de mercados e automóveis que de pessoas. O planejamento urbano já não dispõe de força persuasiva e legitimidade. Está sendo subvertido pela dinâmica do capitalismo global e boicotado pelos mercados. Os interesses digladiam sem projetos e consensos. As cidades parecem à deriva, como se não conseguissem ser alcançadas pela razão política democrática e republicana. Tornam-se alvo fácil da razão técnica exacerbada, de administradores focados em controle e na construção compulsiva de obras e factóides.

É verdade que novas modalidades de gestão despontam no horizonte, anunciando articulações de novo tipo entre técnica e política, decisão e participação, gestão e cidadania. É verdade, também, que a rotatividade política propicia a chegada de novas pessoas e idéias ao governo das cidades. Os próprios moradores movimentam-se sempre, ativando a reinvenção urbana. E as tecnologias da informação ajudam a impulsionar redes de comunicação e cooperação que se colam às utopias em gestação.

Não é suficiente.

Como tornar sustentáveis nossas cidades e impedir que suas toxinas prejudiquem seus habitantes? Que fazer para livrá-las da racionalidade instrumental do poder e da técnica e abri-las à sensibilidade política, ao prazer estético, ao calor humano da democracia? Neste mundo de mercados escancarados, interessa pouco a cidade competitiva e funcional, produtivista e repressiva. Para vivermos e convivermos com dignidade, precisamos de cidades agradáveis, capazes de expressar seus encantos, proteger e promover seus habitantes. Cidades seguras: não a cidade policiada, que veta a vida noturna ou o andar distraído, mas a cidade aberta, dialógica, de todos e para todos, que se auto-organiza.

São Paulo cresceu desordenadamente, com pressa errática. Foi sendo arrumada meio ao acaso, “planejada” a partir de óticas imperfeitas. Tornou-se uma cidade de bairros inventados, de avenidas para automóveis, de poucas praças, em que as antigas edificações são destruídas como coisas velhas, descaracterizadas ou largadas à especulação. Uma cidade de máquinas e negócios, mais que de pessoas, onde se circula e se caminha com dificuldade, respirando mal e sem tempo de olhar a paisagem ou os outros.

Mas é absurdo combater as cidades, desprezá-las ou fugir delas. São Paulo nos perturba e incomoda, mas também nos fornece condições para imaginar formas superiores de convivência e luta pela vida. Não deveríamos temê-la e sim aproveitá-la melhor. É insensato cogitar do recuo a comunidades ideais que negariam os males da modernização e realizariam o desejo de que se estabelecessem relações pessoais intensas, repletas de solidariedade, paz e harmonia.

A idéia de uma cidade sem problemas, conflitos e ruído social é uma ficção descolada da vida contemporânea. Paralisa, em vez de libertar. Cidades não são arranjos abstratos. Nascem do dia-a-dia coletivo, da história e da cultura enraizada, da surpresa e do inesperado, não do planejamento rígido, desejoso de substituir a face naturalmente tensa da cidade por uma harmonia de prancheta. Seu melhor motor é a democracia participativa organizada, impregnada de vida pública e diferenciação.

Quando olhamos São Paulo com atenção, descobrimos que por sob a feiúra se ocultam muitas belezas, por sob o caos há ordem, por sob a desorientação geral pulsam projetos de destino. Quando vamos além das aparências, vemos uma cidade de pessoas que constroem variadas formas de convivência e cultura, que lutam por uma vida melhor e querem governos melhores, capazes de escutá-las.

São Paulo é apenas aquilo que precisamos redescobrir a cada dia: uma cidade de carne e osso, verde e cimento, máquinas e pessoas, ordem e caos. E é nela como construção coletiva, com suas virtudes e contradições, que devemos pensar para agir. Se descobrirmos como politizá-la, organizá-la democraticamente, enchê-la de cidadania e cultura, se soubermos em suma urbanizá-la de modo pleno, teremos o futuro.

Que os eleitores e o próximo prefeito, ou prefeita, procurem assimilar essas expectativas. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 25/10/2008, p. A2]

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Quando a sociologia abraça a estética



Sou amigo de Bruno Liberati há quase quarenta anos. Estudamos na mesma época na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, no começo dos anos 1970. Foi lá que Liberati iniciou a carreira que acabou por consagrá-lo como um dos melhores e mais instigantes ilustradores, cartunistas e chargistas brasileiros. Equilibrando-se entre as ciências sociais e o desenho, enveredou pelo jornalismo e foi trabalhar no Jornal do Brasil, onde permaneceu por três décadas. Hoje é free-lancer e continua a cada dia melhor, produzindo a todo vapor, numa clara demonstração das possibilidades de integração criativa entre a consciência sociológica e a sensibilidade artística.

Visitas regulares a seu blog – o Liberati News – pode comprovar facilmente isso. São postagens diárias riquíssimas em desenhos, cartuns, ilustrações e textos cheios de humor, ironia e interpelação crítica da realidade. Para mim, as caricaturas são um caso à parte, por recobrirem – com uma pena precisa e perceptiva – um amplo panteão de figuras-chave do nosso tempo. Com sua permissão, pretendo reproduzir algumas delas por aqui, a partir de hoje.

Passem sempre que puderem pelo Liberati News e curtam uma empolgante experiência estética e política. Aprendo muito sempre que faço isso.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Marx, Hobsbawm e o capitalismo



Poucos meses antes que o capitalismo mergulhasse de vez numa crise de vastas proporções e arrastasse consigo o fundamentalismo de mercado que imperou nos últimos tempos, o historiador Eric Hobsbawm – numa entrevista a Marcello Musto, da revista eletrônica sin permiso de maio de 2008 – elaborou interessante e sugestiva análise da atualidade de Marx e do renovado interesse que vem despertando, até mesmo em círculos antes blindados contra o marxismo.

Ao reiterar a necessidade de se continuar ou de se voltar a ler Marx, o historiador inglês de 91 anos deixa claro que isso somente poderá produzir bons resultados se Marx for tratado de modo "laico", dessacralizado: "Marx não regressará como inspiração política para a esquerda até que se compreenda que seus escritos não devem ser tratados como programas políticos, mas sim como um caminho para entender a natureza do desenvolvimento capitalista".

A entrevista foi traduzida para o português e reproduzida pela Agência Carta Maior. Merece ser lida e refletida. (Clique aqui.) No mínimo por parágrafos como os seguintes:

“A maioria da esquerda intelectual já não sabe o que fazer com Marx. Ela foi desmoralizada pelo colapso do projeto social-democrata na maioria dos estados do Atlântico Norte, nos anos 1980, e pela conversão massiva dos governos nacionais à ideologia do livre mercado, assim como pelo colapso dos sistemas políticos e econômicos que afirmavam ser inspirados por Marx e Lênin. Os assim chamados "novos movimentos sociais", como o feminismo, tampouco tiveram uma conexão lógica com o anticapitalismo (ainda que, individualmente, muitos de seus membros possam estar alinhados com ele) ou questionaram a crença no progresso sem fim do controle humano sobre a natureza que tanto o capitalismo quanto o socialismo tradicional compartilharam. Ao mesmo tempo, o "proletariado", dividido e diminuído, deixou de ser crível como agente histórico da transformação social preconizada por Marx”.

“Marx não regressará à esquerda até que a tendência atual entre os ativistas radicais de converter o anticapitalismo em antiglobalização seja abandonada. A globalização existe e, salvo um colapso da sociedade humana, é irreversível. Marx reconheceu isso como um fato e, como um internacionalista, deu as boas vindas, teoricamente. O que ele criticou e o que nós devemos criticar é o tipo de globalização produzida pelo capitalismo”.

sábado, 27 de setembro de 2008

Em busca de um eixo



Foi preciso que Soninha Francine, candidata do PPS à prefeitura de São Paulo, associasse a Câmara Municipal paulistana a um “balcão de negócios” para que os eleitores se lembrassem de que existem vereadores na capital do estado. Segundo a candidata, ali é bastante usual a prática de aprovar projetos em troca de cargos, favores e propina. Não foi propriamente uma declaração inédita ou contrária à voz do povo. Mas caiu como uma bomba no plenário do órgão.

A poucos dias do primeiro turno das eleições, os vereadores paulistanos assistem a um prolongamento constrangedor da situação de intransparência em que se encontram, como se entre o Palácio Anchieta e a cidade existisse uma névoa espessa a bloquear a visão dos cidadãos. A opinião pública é indiferente aos vereadores, que são por ela vistos como representantes de si próprios, incapazes de exercer papel positivo na vida urbana, no controle dos atos do prefeito ou no processamento das demandas da população. Poucos eleitores sabem em quem votaram nas últimas eleições, quem foi eleito e em quem votarão no próximo dia 5 de outubro.

Entre os 55 vereadores paulistanos há evidentemente pessoas de mérito, combativas e verdadeiramente preocupadas com a cidade, a começar da própria Soninha, mas não somente dela. Mas estes políticos não parecem possuir força e articulação suficientes para dar à Câmara maior peso e relevância, nem para desfazer a imagem negativa e a indiferença popular que a cerca. Se levarmos em conta a complexidade dos problemas urbanos de São Paulo, a dimensão da cidade e as tensões que atravessam o cotidiano de seus moradores, é fácil perceber o prejuízo que se tem com esta situação, que despoja a população de uma instância confiável de representação política.

Devemos com certeza relativizar o argumento, pois o problema não se esgota numa suposta má qualidade dos representantes. Tem a ver com o conjunto do sistema político e não pode ser compreendido fora dele. Expressa a resistência notável de uma cultura política de tipo clientelista e fisiológica que remonta ao Brasil colonial e se reproduz como praga pelas frestas da condição ultramoderna em que passamos a viver, ajudando a dramatizá-la e sendo ao mesmo tempo turbinada por ela. Reflete a perda de eixo das instituições políticas em geral, que ficaram vazias de poder, pobres de imaginação e impotentes diante da força do mercado e da fragmentação social que não se deixa articular nem dirigir.

Olhando as coisas mais em detalhe, a situação é produto de um sistema eleitoral que personaliza as disputas e incentiva os candidatos a constituírem -- para si e não para seus partidos -- nichos de legitimação e conquista de votos que, com o passar do tempo, acabam por corporativizar os parlamentares e atrelá-los a uma lógica particularista cega para o coletivo. Vítimas não inocentes deste sistema, os partidos são por ele arrastados e condicionados. Não participam das eleições como forças ideológicas ou programáticas coesas, não se comportam como expressão de um movimento orgânico dotado de opinião, mas somente como instrumentos de luta pelo poder. Enredados pelos fios perversos do sistema e perdendo inserção na sociedade, deixam de selecionar seus candidatos ou de submetê-los a alguma coerência. Basta dar uma espiada nos personagens que passam pela propaganda gratuita para que se visualize a gravidade da situação. O cenário é marcado pelo mais puro bestialógico.

Os programas eleitorais também dão sua contribuição. São mais midiáticos que políticos ou educativos. Têm maior qualidade na parte dedicada aos candidatos a prefeito, mas são simplesmente patéticos quando se trata dos candidatos à Câmara. Tratam-nos como secundários, aprisionando-os em camisas-de-força que facilitam as coisas para os mais inexpressivos e tolhem os talentosos. Não abrem espaços para debates que valorizem o trabalho legislativo e expliquem à população a sua importância. Não fomentam a discussão substantiva, nem dizem ao eleitor qual a relevância e a posição que tal ou qual candidato tem no partido a que está vinculado.

O circulo se fecha depois das urnas. O sistema não cuida da qualificação dos eleitos. Não agrega nada à bagagem técnica e política com que chegam à Câmara. As sessões plenárias são o que são, não há o que esperar delas. Mas algo poderia acontecer fora delas. No entanto, são raras as tentativas de reproduzir no Palácio Anchieta as iniciativas tomadas, por exemplo, pela Assembléia Legislativa de São Paulo e pelo Congresso Nacional para melhorar a formação e a atualização dos quadros parlamentares, tanto dos políticos quanto dos assessores. Cursos, seminários, debates, conferências, muita coisa poderia ser feita para dar maior consistência às bancadas e aos vereadores.

Haverá certamente quem questione este diagnóstico, o considere exagerado e injusto para com as coisas boas que existem na Câmara. É inegável que lá dentro há vida inteligente e que ao longo do tempo os vereadores têm ajudado a escrever a história política e administrativa da cidade. A Câmara Municipal é um espaço estratégico mal aproveitado, um recurso carregado de potência represada e subutilizada. Tão logo encontre um eixo político que a organize e a politize de forma substantiva, produzirá resultados. Para que isso aconteça, precisa entrar na agenda democrática, ser discutida, analisada, criticada.

No mínimo por ter destacado a questão, o alerta de Soninha veio em boa hora. Pode ter sido genérico e impreciso, mas criou um fato e deu aos eleitores uma oportunidade a mais para que reflitam sobre o voto que depositarão nas urnas em 5 de outubro. No curto prazo, não é de prever que a qualidade se altere a ponto de modificar o rumo das coisas. Mas oportunidades existem para ser aproveitadas, e é da concatenação delas no tempo que nascem as grandes transformações. [Publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 27/09/2008, p. A2].

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

De volta à ativa


A Fundação do Desenvolvimento Administrativo - FUNDAP existe há 32 anos.

Buscando funcionar como elo de ligação entre a administração pública e as instituições universitárias (particularmente USP. UNESP, Unicamp e FGV), a fundação atua com o compromisso de contribuir para a elevação dos níveis de eficiência e eficácia da Administração Pública do Estado de São Paulo. Faz isso mediante a oferta de cursos e seminários de formação e aperfeiçoamento de executivos públicos, o desenvolvimento de tecnologia administrativa, a prestação de assistência técnica e a realização de pesquisas aplicadas à gestão pública e à economia do setor público.

Tive a oportunidade de lá trabalhar entre 1989 a 2001.

Depois de amargar um período de dificuldades, a Fundação tem procurado recuperar o ânimo e o brilho que sempre a caracterizaram. No início deste ano, colocou no ar o portal interativo Debates Fundap (http://debatesfundap.blogspot.com), aberto à contribuição de todos os interessados na discussão sobre Políticas Públicas. Seu objetivo é ser um importante instrumento de debate de novas idéias e de disseminação da produção científica, desempenhando papel informativo e formativo. Tem caráter aberto e democrático, com espaço para diferentes abordagens e posições apresentadas por analistas de distintas correntes de pensamento.

Vinculado ao portal, o Ciclo de Seminários Políticas Públicas em Debate vem procurando agregar especialistas em torno de uma agenda de temas estratégicos. Os seminários acontecem uma vez por mês e são abertos ao público. A programação está no portal.

No último dia 27 de agosto, participei juntamente com Maria Lúcia Werneck Vianna, da UFRJ, de um deles, dedicado ao “Papel da Sociedade e da Política na Conformação da Atuação do Estado”. O material lá apresentado, no qual se inclui o meu texto “Da frustração à reposição da confiança na política”, pode ser acessado em http://debatesfundap.blogspot.com/2008/01/link.html

sábado, 30 de agosto de 2008

Terra Gramsci








Giorgio Baratta é professor de filosofia na Universidade de Urbino, Itália. Marxista erudito, de imaginação larga e fôlego inesgotável, dedica-se a uma batalha incansável para agitar idéias, unir experiências e produzir cultura de esquerda. Sua relação com o pensamento de Gramsci é intensa e original. Baratta não é um estudioso em busca do verdadeiro Gramsci, mas sim um teórico que deseja usar Gramsci para interpretar as urgências do presente.

Com esta preocupação, Baratta tem girado o mundo. Uma de suas paixões é buscar os links político-culturais entre o Brasil e a Itália, mais precisamente entre Salvador e Nápoles. Seu livro Le rose e i quaderni (Roma, Gamberetti, 2000) foi traduzido e publicado no Brasil (As rosas e os Cadernos. Rio de Janeiro, DP&A, 2007). É uma excelente amostra do programa teórico, político e cultural a que se dedica Baratta.

Seu empenho em renovar o estudo e o uso de Gramsci convergiu recentemente num movimento que está a ganhar vida na Sardegna, Itália, região onde nasceu Gramsci. Com o apoio da International Gramsci Society, Terra Gramsci (http://www.gramscitalia.it/terragramsci.html) propõe-se a ligar as terras do mundo, a constituir uma rede itinerante para promover intercâmbios tendo em vista um projeto de formação de um novo senso / imaginário comum. Realiza concertos, festivais de poesia, teatro e cinema, além de seminários e conferências.

O “nosso Gramsci”, pode-se ler no manifesto de lançamento de Terra Gramsci, “é um grande intelectual cosmopolita internacionalista, e ao mesmo tempo um homem rico de sentimentos elementares: alguém que vivia a sua terra – pedras, plantas, animais, culturas, tradições – como fonte permanente de paixão pelo senso comum de sua gente, que ele se esforçava para levar a uma consciência mais aberta e mais madura, capaz de passar sem solução de continuidade da Sardegna à Itália, à Europa, ao Mundo”.

No último dia 26/08, Baratta publicou amplo artigo no jornal Liberazione, de Roma, no qual reapresenta Terra Gramsci. Seu título diz tudo: “Uma rosa viva na terra de Gramsci nasce mesclando música, palavras e imagens” (http://www.liberazione.it/a_giornale_index.php?DataPubb=26/08/2008).

Reproduzo abaixo um trecho particularmente emblemático, revelador do espírito que move este culto e dinâmico gramsciano.

« “Gramsci morreu”, afirma um livro recentemente publicado na Itália. Se é assim, viva Gramsci!

Outros também morreram, basta pensar em Lênin e depois em Togliatti, que usou Gramsci para construir todo um programa político. Depois da experiência togliattiana, abriu-se na Itália um vazio de presença real, que dura ainda hoje, não obstante o vivaz fermento de idéias produzido por estudiosos da “International Gramsci Society”, como documentam livros recentes de grande valor, entre os quais, em ordem inversa à da publicação, La continua crisi [A crise contínua] de Pasquale Voza, La rivoluzione necessaria [A revolução necessária], de Raul Mordenti, Tre voci nel deserto [Três vozes no deserto], de Giuseppe Prestipino, e Sentieri gramsciani de Guido Liguori [Roteiros para Gramsci, ed. bras. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2007] .

Como explicar esta dificuldade de impacto na realidade? Os mortos são usados pelos vivos. Mas primeiro é preciso se dar conta até o fundo de que estão mortos. Talvez ainda cultivemos algumas ilusões. Se tivermos a coragem de virar a página sem vacilação e refletirmos sobre as urgências do existente, perceberemos que usar significa traduzir, isto é, comporta a adoção de uma outra linguagem, irremediavelmente distinta da original. Uma linguagem é um mundo. Uma experiência-mãe, que demonstra a capacidade de estimular o novo, que é precisamente o legado de Gramsci e foi o ardor que nos anos 1970 teve Stuart Hall na Inglaterra de “teorizar” não tanto sobre Gramsci, mas – com Gramsci – sobre as urgências do existente. Hall buscou em Gramsci o eixo para analisar as novidades do “populismo autoritário” da senhora Thatcher, que havia sido capaz de traduzir e deformar na linguagem da direita certas necessidades, idéias e sentimentos extraídos do patrimônio político-cultural da esquerda. Para esta operação, Hall e o movimento a ele vinculado valeram-se de estudos culturais, de disciplinas e linguagens as mais diversas.

Pouco tempo atrás, juntamente com Derek Boothman, tive a oportunidade de refletir com Hall em Londres sobre as analogias e diferenças entre a Inglaterra populista-autoritária de então e a Itália de hoje, mas também sobre as modalidades de uma estratégia cultural de “esquerda”. O pensamento de esquerda se estilhaçou diante da televisão? Vamos então dar vida a um esforço coletivo de imaginação crítica, inspirado em um autor que no último de seus Cadernos do cárcere escreveu: se se despe a gramática da língua, sobra somente um sistema de imagens. »

sábado, 23 de agosto de 2008

Administradores e políticos



Ambrogio Lorenzetti (c. 1290 - c. 1348). Alegoria do Bom Governo

Ainda que se deva reconhecer a persistência das cenas hilárias de sempre, dos personagens improváveis e das promessas surrealistas, invariavelmente presentes em todas as eleições, dá para admitir que melhoraram o perfil e o desempenho dos candidatos a prefeito, ao menos nas grandes cidades do país, como é o caso de São Paulo.

Apoiados por especialistas em marketing e pesquisa de opinião, por estrategistas de comunicação e por um não-desprezível arsenal tecnológico, os candidatos estão se mostrando mais à altura dos cargos que almejam. Apresentam propostas concretas, buscam equacionar problemas, exibem informações e conhecimento específico, parecendo ter nas mãos as cidades que pretendem governar.

Até mesmo os partidos políticos, estes entes tão feridos em sua integridade, tão sem alma e espinha dorsal, saíram a campo em melhor forma. Posicionam-se com cautela diante de um eleitor mais informado e menos disposto a se entregar passivamente a qualquer um que lhe peça o voto. Não despejam palavrório inócuo sobre ele, nem o submetem a uma sobrecarga de pressões ideológicas. Não conseguiram aperfeiçoar substancialmente a seleção dos candidatos que integram suas listas para as Câmaras Municipais, mas esforçaram-se para cumprir este papel no que diz respeito aos que postulam o Executivo. Estão a revelar que algo se passa em seus bastidores, como se estivessem finalmente a sentir os sinais de mudança e insatisfação que há tempo têm sido emitidos pela vida social.

Elogios também para a cobertura jornalística, especialmente a da mídia escrita. Todos os grandes jornais do país estão se superando. Facilitam o contraste entre as candidaturas, mostram as frestas por onde passam as demandas da cidadania, explicam o funcionamento dos poderes políticos e dos órgãos de governo. Além disso, funcionam como excepcionais tribunas de debates, preenchendo o vazio de discussão democrática deixado pelas campanhas mais pirotécnicas dos tempos atuais. Um canal como o que começou a ser disponibilizado pelo portal Estadão.com.br pesa de modo expressivo na elevação da qualidade do processo eleitoral.

No entanto, apesar destes avanços, as eleições transcorrem como se fossem um fardo que os cidadãos precisam carregar. Não despertam paixão cívica ou maior interesse. Ainda que mais bem informado, o eleitor parece distante, indiferente, sem estabelecer empatia com candidatos ou partidos políticos. Numa comparação arriscada, seria possível dizer que se comporta como um condômino frente à necessidade de eleger o próximo síndico.

Sempre haverá quem pondere que as cidades são mesmo condomínios em escala ampliada, que os prefeitos devem cuidar delas como se fossem suas casas mas fazendo escolhas que beneficiem a todos, sem se preocupar em favorecer este ou aquele bairro, este ou aquele partido. Muitos pensam que governar cidades é um exercício mais técnico e administrativo que político, algo que se cumpre com sucesso quanto menos política nele existir.

Não é bem assim.

Primeiro de tudo, porque governar é sempre mais que administrar. Não significa somente cuidar da casa ou pôr os papéis em ordem. É mais que manutenção e empenho para fazer com que os sistemas funcionem, mais que sabedoria para escolher auxiliares ou utilizar as finanças públicas. Prefeitos não deveriam agir como gerentes, sobretudo porque sua tarefa não é simplesmente fazer a máquina andar e sim criar condições para que uma comunidade lute por uma vida melhor.

Gerentes administram, prefeitos governam. Mais que jogo de palavras, a frase sugere que prefeitos existem para coordenar processos abrangentes de tomada de decisões, que envolvem milhares ou milhões de pessoas, muitos interesses e expectativas. Devem lidar com correlações de forças complicadas e situações de alta complexidade, e em muitíssimos casos somente se saem bem se contarem com o apoio da população. Precisam deste apoio, aliás, desde logo, como do ar que respiram. E não podem obtê-lo se agirem como técnicos especializados em gestão e administração, pessoas talentosas em arrumar gavetas mas sem qualquer brilho particular, sem carisma, sem liderança e especialmente sem um projeto que mexa com a comunidade, desperte alguma paixão e facilite engajamentos.

Tudo isto é fazer política, não administrar. Mas é fazer grande política: agir com os olhos no Estado, na comunidade política, não nos próprios interesses ou nos pequenos negócios de intermediação e favor. É ir além da rotina.

Se uma população mantém com as eleições uma relação fria e distante, encarando-as mais como obrigação que como dever, não temos uma situação confortável. Temos na verdade um problema. Podemos examiná-lo lembrando que, no modo de vida atual, o eleitor é dispersivo e flutuante, não tem grupos consistentes de referência ou identidade fixa, nem causas claras ou vínculos coletivos fortes. Não interage com instituições políticas qualificadas para responder a suas demandas e às questões que mexem com sua existência e com sua cabeça. É atacado sem trégua pelo mercado, que o fisga e o enreda num verdadeiro frenesi consumista. Olha a política e o Estado com desconfiança, quem sabe com a mesma postura de compra-e-venda que está habituado a ter no mercado.

Não se trata portanto de culpar o eleitor. Partidos, estrategistas e candidatos deveriam enfrentar esta “despolitização”, em vez de se amoldar a ela. Adaptando-se, contribuem para reforçá-la. Quando se apresentam como técnicos e administradores competentes sem acenar com uma proposta de cidade – ou seja, de polis, comunidade política –, somente estão a prolongar uma situação que, no limite, esvaziará a vida de sentido público.

O processo eleitoral em curso fornece excelente oportunidade para que exceções amadureçam e comecem a alçar vôo. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 23/08/2008, p. A2].