quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

A falta de uma oposição

Não poderia ser mais melancólico o final do ano político. Em meio ao foguetório e às confraternizações habituais, oculta-se um quadro sem brilho, pobre, desqualificado, que não promete nenhum bom augúrio.

É um quadro curioso, que intriga precisamente porque não sugere qualquer indício de ameaça à estabilidade política ou de algo que esteja pondo em risco a democracia no país. Se nada ameaça a legalidade política, se tudo parece indicar que continuaremos a viver democraticamente, a assistir ao revezamento regular dos governantes e à eleição sem traumas dos parlamentares, por que persiste esse clima de indiferença e pessimismo com relação à política? Será que é por que tudo parece estar bem – ou muito bem, como pensam alguns – que ninguém no país se mostra civicamente comprometido, interessado em participar das decisões nacionais ou mesmo decidido a brigar para eleger os melhores representantes políticos?

Pode-se associar a isso ao menos uma dupla preocupação. Por um lado, se a política não funciona bem, não envolve nem compromete os cidadãos, aumenta o risco de que a cidadania não consiga se manter ativa e organizada, pressionando por seus direitos e vigiando os governos. Como poderá ela manifestar suas aspirações e lutar para garanti-las? Como serão formados os consensos que nortearão as escolhas dos governantes? Por outro lado, a inoperância da política pode significar um obstáculo a mais para os planos futuros da sociedade, tanto quanto para as promessas e os compromissos anunciados pelos governantes. Mesmo o tão aclamado e acalentado desenvolvimento ficará sob risco, e isso para não lembrar das expectativas de reforma social e melhoria da distribuição de renda, operações que são eminentemente políticas e dependem de forma crucial de consensos que somente a política pode produzir.

A sucessão de escândalos, a corrupção convertida em prática cotidiana, o baixo nível dos debates e a ausência dramática de propostas integradas e factíveis para se governar o país é a ponta de um iceberg que hoje aprisiona todo o campo político nacional. Não há partido que escape dele. Depois do caso Azeredo, em Minas, foi a vez do caso Arruda, no Distrito Federal, amplificado com os boatos de que novas revelações estariam prestes a atingir políticos de outras unidades da federação. Ou seja, ligando-se os fios ao mensalão de 2005, aos vários pequenos casos que a ele se seguiram, à indigência do Congresso e à opacidade programática dos partidos políticos, o resultado é que a sujeira e a mediocridade contaminaram o sistema inteiro.

Dada a variável tempo, o prejuízo acabou localizado: afetou a medula das oposições, tirando delas aquele sussurro “ético” que poderia se converter num dos eixos do discurso com que disputar o pleito de 2010. Ou seja, o que já era ruim, ficou péssimo. E as oposições chegaram ao fim do ano em situação de miséria política e programática, sem discurso, sem propostas, até mesmo sem candidatos e lideranças consensuais.

Quando se fala em oposições, fala-se em PSDB, DEM e PPS, partidos de caráter e dimensões distintas, mas que vêm falando linguagem semelhante e afinada.

Como articular coisas tão diferentes? Quem comanda, quem define os conteúdos, qual o papel de cada parceiro dessa operação? A “frente” oposicionista não responde a essas questões. Não é comandada por ninguém, não tem definições programáticas e não fala outro dialeto que não o anti-Lula, com pitadas improdutivas de frustração e udenismo moralista. Define-se como centro-esquerda, mas de esquerda não tem nada, sequer uma retórica. É algo que intriga, especialmente quando se lembra que o PPS é herdeiro do PCB e o PSDB se considera expressão da social-democracia, ou seja, são continuadores de tradições repletas de glórias e identidades, goste-se ou não delas. 2010 será um ano novo se esses partidos honrarem suas tradições.

Uma oposição sem discurso e sem coerência não deveria ser vista como objeto de desejo da situação. Pode ser que agrade a alguns setores governistas ou a parte da cúpula que conduzirá a campanha de Dilma Rousseff, pois é, afinal, um obstáculo eleitoral a menos. Mas é uma tragédia para a democracia e para a sociedade, especialmente porque deixa parcelas importantes da população sem um norte e reforça o clima de unanimidade que, ao não corresponder à realidade, funciona como um elixir de apatia e desinteresse. A ausência de uma oposição vigorosa não é boa para os governos em geral e muito menos para aqueles que se seguirão à era Lula, pois os despoja de “consciência crítica” e os deixa sem qualquer tipo de freio ou contraponto factível.

O ano só não terminou perfeito para a situação porque perfeição não existe. Não há como negar que o governo Lula abre 2010 em posição de vantagem, fortalecido pelos escândalos do último bimestre, pela alta popularidade do presidente e pelas previsões de que 2010 trará consigo crescimento econômico e mais benefícios sociais. Isso forma uma conjunção astral terrível para as oposições, roubando delas quase todas as fichas. Em nome do que se baterão os candidatos contrários a Dilma? A ladainha moralista ou gerencial, a denúncia do “assalto petista ao Estado” e as acusações de populismo serão inócuas, sobretudo se não forem apresentadas com um mínimo de razoabilidade e suporte factual.

Do lado governamental, há, é claro, os riscos inerentes a uma aliança com o PMDB, a conduta mercurial de parceiros pesados como Ciro Gomes, a ruindade intrínseca das falas triunfalistas e maniqueístas tão usuais, a dificuldade que o PT terá de superar o lulismo, dar cara própria à sua candidata e qualificar seu discurso como força reformadora.

Se o PT e os demais partidos conseguirem sacudir a poeira e ganhar consistência, 2010 estará salvo. Se fracassarem, continuaremos na mesma velha e boa toada de sempre.

Bom ano novo a todos. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 26/12/2009, p. A2]

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

O PT à esquerda


Obrigado, Nani.

Circula nos ambientes políticos a informação de que o PT pretende retomar um discurso de esquerda para as próximas eleições, fato que estaria a ser demonstrado por recentes declarações e documentos do partido.

Antes de saudar o fato, que pode contribuir para que se ganhe maior clareza no jogo político, é preciso avaliar a situação. O que indica ela? A presença de um movimento para enquadrar Lula, seu governo e sua candidata à sucessão, que carregam consigo uma imagem centrista e moderada bem consolidada? Ou o desencadeamento de uma operação para reerguer o partido e voltar a inseri-lo nos trilhos originais, de onde escapou nos últimos anos?

Enquadrar Lula é algo de que não se deveria cogitar, pois ele se tornou, com o tempo, maior que o PT. Hoje, segue carreira-solo, administrada por um seleto grupo de gestores leais e por uma imponente onda de culto e adoração popular, que impede até mesmo o exercício da ponderação, proíbe críticas e lhe concede oxigênio suficiente para dispensar maiores amarras e compromissos institucionais, incluindo os partidários. Seria como imaginar, mutatis mutandis, o enquadramento de um Fidel, um Jânio ou um Prestes.

Mas partidos de esquerda são seres condenados a explicar e justificar todos os seus passos. Nesse movimento, são sistematicamente tentados a reiterar convicções de antes, com as quais foram batizados e ganharam selo de identidade. Vivem de forma dilemática: precisam se renovar sempre, mas não conseguem fazer isso com facilidade, pois as tradições pesam e muitos de seus integrantes se recusam a seguir as novas orientações, regra geral decididas e impostas pelas cúpulas.

Dá-se algo assim com o PT, que desde o final dos anos 1990 enveredou por um caminho reformista, expulsou parte de suas alas tidas como “radicais”, chegou à Presidência da República e se converteu em expoente do universo social-democrata. Ao longo desse percurso, muitos erros foram cometidos, espocaram crises de identidade, diluições ideológicas e regressões fundamentalistas. Seria lógico, portanto, que suas direções se dedicassem a evitar a debandada dos militantes e eleitores saudosos dos velhos tempos, tanto quanto a atrair e soldar a adesão de novos seguidores.

A retomada de um discurso de esquerda pode ser vista como uma resposta a essa situação, uma estratégia direcionada mais ao público interno ampliado (militantes e eleitores) do que à sociedade. É como se as cúpulas partidárias estivessem a dizer: “continuamos de esquerda, não nos abandonem, não esmoreçam!” – num apelo para que não se multipliquem eventuais fugas rumo ao PSol ou à candidatura de Marina Silva, por exemplo.

É isso, mas não é somente isso. O PT também deseja se fazer presente nas campanhas de 2010, orientar seus candidatos, dar a eles combustível, recursos de combate e persuasão. Está a se movimentar para isso.

Se pensarmos em termos abstratos, típico-ideais, um partido cumpre essa meta em dois planos: olhando para as amplas massas e para o futuro.

No primeiro deles, elabora um kit de sobrevivência, um conjunto de princípios essenciais traduzidos em expressões simbolicamente eloqüentes e de fácil manuseio, estilo Estado vs. Mercado, projeto popular e democrático vs. projeto do Consenso de Washington, governo nacionalista e internacionalista vs. governo entreguista, o nosso Brasil vs. o Brasil deles, e assim por diante. É nesse plano que se apresentam as realizações governamentais, as virtudes do líder e de seus sucessores, os planos sórdidos dos adversários. A intenção, aqui, é organizar um guia para a ação e, acima de tudo, formar opinião. Sim, porque os eleitores precisam de formadores de opinião, mesmo quando são de esquerda.

No segundo plano, o partido elabora uma teoria da sociedade e da transformação social que julga a ela corresponder, determinando o lugar que ele próprio, partido, e seu entorno ocupam nesse processo. É um plano sofisticado, que requer uma análise do mundo, a definição de estratégias de longo prazo e das alianças fundamentais, o reconhecimento claro dos obstáculos e das possibilidades concretas de mudança. Nele, a simplificação não tem lugar e a agitação deve ser substituída pela argumentação.

Na dimensão típico-ideal, esses dois planos caminham juntos, se retroalimentam O partido fala para as massas com um discurso sustentado pela tradução criteriosa de uma teoria social consistente, que é corrigida e ajustada à medida que se obtém o feedback da sociedade.

Salvo avaliação mais aprofundada, o que parece estar a ocorrer no Brasil expressa uma disjunção entre esses dois planos, com uma concentração unilateral no primeiro deles. O PT está esquentando as turbinas para oferecer a seu “povo” o empuxo necessário para uma ação vitoriosa em 2010. Está a produzir armas de combate, agitação e identificação. Como seria mesmo de se esperar.

Não há porque alguém ficar surpreso ou incomodado com isso, que é política em estado bruto, igualmente praticada pelos demais partidos. Os puros de espírito, as almas mais sensíveis, poderão torcer o nariz para as acusações infundadas, os auto-elogios extremados e passionais, as manobras dedicadas exclusivamente a prejudicar inimigos e adversários. Terão de entender que política também é feita disso.

É feita disso, mas não somente disso. Se o PT se julga ou pretende ser um partido de esquerda de fato, não pode permanecer estacionado no plano da agitação, do discurso fácil para as massas. Precisa ir além e acoplar a esse plano um segundo plano, de elaboração teórica, produção cultural e projeção do futuro, como, de resto, espera-se que façam todos os demais partidos. Sem isso, ficará no meio do caminho e não se completará como partido de esquerda. Poderá até ter sucesso e vencer em 2010, mas não contribuirá para integrar a sociedade, convencê-la da necessidade de uma reforma social e fornecer-lhe algo mais denso e duradouro do que um sonho para sonhar. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 28/11/2009, p. A2].