quinta-feira, 30 de junho de 2011

Marchas, abraços e contramarchas


Foram três manifestações distintas. Todas na cidade de São Paulo e na mesma semana, como que encadeadas. A coincidência delas, ainda que não seja inusitada, sugere alguma reflexão.
Quarta-feira, dia 22, foi o dia do “Abraço Coletivo na Paulista”, concebido como "um gesto de amor à cidade e respeito ao próximo", além de um repúdio aos atos de violência contra homossexuais ocorridos recentemente na região. Centenas de pessoas deram-se às mãos ao meio-dia, caminhando simbolicamente na contramão da avenida, um dos maiores ícones da cidade e expressão perfeita da vida frenética, tensa e impessoal que tem feito a fama dos paulistanos. Bela demonstração de que por aqui também há ações cívicas no sentido mais básico da expressão, qual seja, o da conduta que busca compartilhar o desafio de construir uma ordem social justa, igualitária e governada por todos e para todos.
No dia seguinte, sob o embalo do Corpus Christi, foi a vez da “Marcha para Jesus”, promovida por igrejas e congregações evangélicas com o intuito de expressar publicamente a fé, o amor e a exaltação do nome do filho de Deus, que precisaria ser mais valorizado. Muitos milhares de pessoas foram às ruas proclamar “o Senhorio de Jesus”, cantar e dançar ao som de bandas e cantores gospel. Diversas famílias aproveitaram para agradecer os milagres e as dádivas recebidas.   
Pelo andar da carruagem, porém, o que se viu na manifestação foram mais trevas do que luz. Valendo-se do nome e da imagem de Jesus, a caminhada desfilou uma sucessão de ataques aos que são considerados os atuais piores “inimigos” da cristandade, verdadeiros aliados do demônio: os homossexuais, atacados em si, em seus direitos e em suas reivindicações. Puxada por pastores-políticos, a passeata não perdoou algumas instituições do país (o STF, antes de tudo) que, por se mostrarem sensíveis a temas tidos como tabus, deveriam ser vistas como auxiliares do processo de entronização de Satanás na Terra.
O ato foi festivo e familiar na formatação geral, mas teve um subtexto que lhe deu o tom de marcha fúnebre, uma contramarcha, triste na evolução e reacionária no objetivo. Deixou claro que a fé muitas vezes caminha abraçada com o fanatismo e o fervor obscurantista, veículos certos da intolerância e da discriminação. Para piorar, a marcha forneceu palco para campanhas políticas explícitas, deixando-se arrastar por elas.
Por último, fechando a semana, o domingo assistiu à 15ª Parada Gay, festa alternativa que há anos contagia a cidade e a insere no circuito das mais avançadas lutas por direitos. São Paulo se acostumou e se identificou tanto com ela que chegam a surpreender as manifestações homofóbicas que ainda ocorrem entre os paulistanos. Os gays dão vazão em alto e bom som, de modo espalhafatoso, irreverente e alegre, muitas vezes chocante, a uma agenda sintonizada com o modo de vida atual, em cujo centro está um sempre mais ampliado desejo de liberdade. Põem-se no meio da democratização social em curso, processo que encontra resistência em hábitos seculares, manifestações de fé cega e fanática, postulações machistas de autoridade, fundamentalismos de todo tipo. A Parada por eles organizada proclama um mundo estruturado pela diversidade, pela tolerância, pelo respeito à liberdade de cada um e aos direitos de todos, mundo que não existe de modo pleno, mas que já dá mostras de sua potência civilizacional. O tema da Parada 2011 fala por si: "Amai-vos uns aos outros: basta de homofobia!".
O registro das três manifestações mostra uma São Paulo de múltiplas comunidades e agendas, uma cidade plural, marcada pela diversidade – uma terra onde todos têm voz e podem se manifestar. A Marcha pela Descriminalização da Maconha, realizada semanas atrás, deve ser igualmente lembrada. A cidade condensa essa pluralidade em sua própria dinâmica, em seus bairros étnicos, em seu multiculturalismo, nos milhões de imigrantes europeus, escravos africanos, brasileiros de outros estados, latino-americanos, que ajudaram a construí-la e cujos descendentes aqui permaneceram, amalgamados e pouco segmentados entre si. Uma cidade plural e sem guetos.
Com o passar do tempo, São Paulo se tornou uma cidade hipermoderna, globalizada, que deslocou a vida tradicional que prevalecia soberana, ainda que não com exclusividade. Basta lembrar que foi aqui que se realizou a Semana de Arte Moderna, em 1922, com a qual se anunciou o destino que estaria reservado à futura metrópole. Hoje, a cidade avança sob os fluxos de uma vida mais “líquida”, tecnológica, pouco controlável e dificilmente governada. Não deixou, porém, de ser capitalista nem conseguiu civilizar seu capitalismo, que continua responsável pela reiteração do que há de desigualdade, pobreza e alienação na cidade. A “vida líquida” prevalecente também não soterrou a “vida sólida” de antes, que encontra muitas maneiras de se reproduzir, recebendo oxigênio até mesmo daquilo que a hipermodernidade produz de mais típico. A liberdade e a tolerância incentivadas pela “vida líquida”, por exemplo, fazem com que a fé cega e as convicções rígidas da “vida sólida” se encrespem e sobrevivam.
Gays e evangélicos, com suas marchas e contramarchas, mostram uma São Paulo em transição. O predomínio de um modo “líquido” de vida não produz imediatamente uma boa sociedade, nem mesmo uma sociedade melhor, pois oculta demasiadas distorções e injustiças, obriga a que se viva no risco e na incerteza, de maneira excessivamente frenética e fora de controle. Nem sequer facilita a mobilização social. Mas a “vida sólida” de antes já não tem mais como nos dar segurança ou nos orientar, o que faz com que tenhamos de viver entre dois mundos, um que ainda não se afirmou plenamente e outro que pena para sobreviver.
Assim com São Paulo, assim com a maior do planeta. Bem-vindos ao século XXI, no correr do qual estaremos imersos numa batalha para saber que eixo, que ética e que ideias estruturarão a “vida líquida” em que passaremos a viver. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 29/06/2011, p. A2].

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Amigos, inimigos e batalhas políticas


“Um amigo deixa o governo e uma amiga assume seu lugar”, declarou a presidente Dilma Rousseff na cerimônia de posse da nova ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann. Frase bonita e emblemática, capaz de mostrar que nas relações políticas também há lugar para o afeto, a lealdade, a cooperação desinteressada – em suma, para a amizade.
Dirigida ao ex-ministro, a declaração soa protocolar. Afinal, se amizade intensa houvesse, ele teria ponderado que seu acumulado de problemas implicaria risco para o governo e não teria insistido em nele permanecer. Em relação à ministra Gleisi, porém, a frase é perfeita e tem tudo para ser o anúncio de uma nova era na Casa Civil da Presidência. Agora, ela está nas mãos de uma mulher jovem, dinâmica, tecnicamente bem preparada, com uma bela trajetória política e que, se não bastasse, se destacou nos últimos tempos pela defesa aguerrida da candidatura Dilma, primeiro, e depois da presidente Dilma. A nova ministra chega com o propósito de somar, não de ser a integrante mais forte do governo; seu objetivo é “cuidar da gestão e do acompanhamento de projetos”. São coisas que indicam uma relação diferenciada, promissora.
Foram tantas as demonstrações de afeto recíproco naquela cerimônia que seria o caso de perguntar se não teriam sido elas a manifestação de que a Presidência da República também é um ambiente infestado de inimigos, produzidos inevitavelmente pela dinâmica mesma do poder e da luta política. Se a pergunta faz sentido, quem estaria a atravancar o caminho de Dilma, a assoberbá-la com pressões, a esparramar pedras pelos tapetes do Planalto para retardar suas decisões ou induzi-la ao erro? Seriam esses “inimigos” os responsáveis pelo tão falado imobilismo da presidente, pela dificuldade que teria tido de cortar o mal pela raiz ao saber da delicada situação de Palocci?
É razoável que se pense assim. Por estar obrigada a agir num ambiente contaminado, a presidente não tem como se conduzir de modo destemido. Precisa contemporizar, ouvir, ponderar. Parece não ter muita paciência ou jeito para isso. Conta com poucos auxiliares desinteressados e descobre que muitos de seus amigos, aliados ou companheiros são, na verdade, protagonistas ativos de uma operação dedicada a cercá-la, a pressioná-la, a roubar-lhe autoridade. No caso Palocci, não demorou em agir. Simplesmente fez o que pôde na hora que pôde.
Os “inimigos” do bom governo no Brasil compõem um elenco extenso e difícil de ser administrado.  O principal deles é o próprio sistema com que se governa, o assim batizado “presidencialismo de coalizão”, brilhantemente dissecado pelo cientista político Renato Lessa na edição anterior do caderno Aliás (“Jabuticaba institucional”, 05/06/2011). Trata-se de um sistema de coalizões, ao qual se superpõe um conjunto de fraquezas, idiossincrasias, ausências e excessos. Sem ele, não se governa, mas com ele se governa mal. Para se equilibrar e ganhar “governabilidade”, a Presidência é obrigada a compensar a falta de base parlamentar leal com a entrega de cargos e espaços a diferentes grupos parlamentares, convertidos em aliados. Ganha apoio para aprovar determinados projetos, mas perde capacidade de coesão e gestão. Recebe mordidas por todos os lados, convive diariamente com o inferno das demandas e das chantagens.
O sistema poderia funcionar – e ser, assim, mero arranjo para acomodar as coalizões inevitáveis – caso a chamada “classe política” tivesse melhor qualidade e fosse capaz de se autocoordenar. A má qualidade dos parlamentares tem a ver tanto com o despreparo político de muitos deles, quanto com os compromissos que mantém com interesses espúrios ou com setores sociais mais atrasados, fato que transfere para o Parlamento uma demanda de teor verdadeiramente explosivo. Mas também retrata a inexistência de mecanismos que eduquem os políticos, que os façam agir de modo mais coordenado e menos corporativo, mais de acordo com o interesse público do que com interesses privados. Os partidos políticos deveriam ser essas escolas de política, mas não o são. Nenhum deles. Estão todos ou acomodados na tradicional posição de fazer o cerco (e a corte) ao poder, ou às voltas com problemas internos recorrentes ou à espera das próximas eleições. Não se afirmam nem no Legislativo, nem na sociedade.
Emergiu desse vácuo outro “inimigo” de Dilma nesses seus primeiros meses de governo. Sentindo que a casa ameaçava pegar fogo, aliados e petistas chamaram um bombeiro conhecido por suas habilidades de negociador. Lula irrompeu em Brasília e trouxe consigo os ventos da inconveniência. Com ou sem intenção, passou a imagem de que é mais forte do que a presidente e de que deseja convertê-la em refém. Enfraqueceu-a perante a opinião pública, sugerindo que se alguém pode de fato coordenar o governo esse alguém está fora, e não dentro, do Palácio do Planalto. Desse ângulo, não admira que tanta atenção tenha sido dada à amizade na última semana.
Um último círculo precisaria ser lembrado. Ele tem a ver com algo que se espalha pelo mundo como um furacão. É que a política se dissociou da sociedade e perdeu o respeito dela. Não dialoga mais com ela, nem como “opinião pública”, nem como sociedade civil, nem como estrutura social. O sistema político se isolou, vive encastelado, concentrado em seus próprios interesses. Não se reforma nem se deixa reformar. Produz inúmeros problemas e quase nenhuma solução. Permanece como que acorrentado a um tempo pretérito, ao passo que a sociedade avança pelas ondas líquidas e digitais da vida hipermoderna.
Esse conjunto de “círculos inimigos” é mais ameaçador do que qualquer deslize ético, político ou moral de um ou outro ministro. Está na origem desses deslizes. E será contra ele que o governo Dilma, fortalecido pelo início de recomposição da Casa Civil, terá de travar suas mais importantes batalhas. [Publicado no Caderno Alias, O Estado de S. Paulo, 12/06/2011].

sábado, 4 de junho de 2011

Diálogos para uma sociologia política relacional

 Assim que divulguei na rede a publicação do artigo "Os dominós virtuais e a democracia real" (post anterior), meu amigo Marcelo Castañeda reagiu prontamente. Propôs que trocássemos ideias a respeito da leitura que ele havia feito do artigo e das reflexões que vem fazendo a respeito do ciberativismo na pesquisa que desenvolve para sua tese de doutoramento, em finalização no Rio de Janeiro.
Para quem não o conhece, eis como o Marcelo se apresenta: "um ser no mundo, cientista social, um sociólogo que etnografa, um agitador acalmado, inquieto se aquietando". Fica claro que se trata de uma pessoa do bem, com talento e empolgação, não é não?
O dialogo avançou rapida e abundantemente, animado em especial pelo conhecimento do Marcelo e por sua vibração de pesquisador. Concluímos que valia a pena sistematizar as conversas virtuais ocorridas via Facebook na semana passada e socializá-las em nossos blogs. Marcelo fez esse trabalho, que vai reproduzido abaixo e que também pode ser encontrado no blog dele, Lida Diária, que pode ser acessado aqui.
Nossa intenção é que com essa socialização mais gente possa se envolver na discussão, que sem dúvida nenhuma figura no topo de um agenda sobre a política no mundo atual. 


Marcelo Castañeda - Bem, antes que me esqueça com as atarefações do dia. Em relação aos dois primeiros parágrafos do artigo de Marco Aurélio Nogueira, publicado ontem no Estadão (compartilhado neste post), o "start" que dou na discussão segue nos comentários abaixo:
‎1- O mundo vem ficando bem diferente desde sempre, mas se tomarmos a década de 1960 como cenário, desde 1968, pelo menos os movimentos sociais começam a empreender ações que ampliam a esfera do protesto para além da esfera da relação capital-trabalho, configurando o que alguns denominam “novos movimentos sociais”. Estas ações começam a apresentar também modificações na estrutura de organização dos movimentos, em benefício de formas de organização mais horizontais, que alguns chamam “em rede”.
Assim, esta “onda” parece ter origens bem remotas. Para não parecer fenomenológico em excesso, podemos situar na década de 1990, mais “precisamente” em 1994 com a “emergência” do zapatismo na selva mexicana, um indício de que a Internet desempenha uma agência cada vez mais fundamental nas mobilizações contemporâneas. Isso pode ser visto nesta mais recente “onda” de protestos árabes e, por ora, mediterrâneos, mas também aconteceu nas mobilizações contra a OMC em Seattle, 1999, bem como na configuração do que se denominou “Fórum Social Mundial”, em 2000.
Claro que se isso fosse contextualizado no artigo, o veículo teria que publicar em pequenas partes. Mas aqui, sem este compromisso pela “síntese”, que tal tentarmos entender como a Internet atua nestes protestos, e entendendo isso, começar a perceber e debater, sob diferentes pontos de vista, como “tecnologias, práticas e contextos” configurados por plataformas como o Facebook e o Twitter desempenham um papel nestas “ondas de protestos”.
2- Em meados de março, houve uma semana de protestos articulados em redes sociais virtuais que irromperam em Portugal, organizados em torno da denominação “Geração à rasca”. Lembro que postei várias imagens e até me empolguei. Mas até que ponto este processo português não está sendo encoberto pela “onda espanhola”?
No final de março, não ouvia mais falar em “geração à rasca”, quem sabe os protestos não foram solapados pelo processo eleitoral que está em curso em Portugal? Quais as conexões em jogo, seja em Portugal, na articulação dos protestos com plataformas eleitorais, seja na articulação do “dominó” entre as “peças” árabes e as “peças” espanholas?
3- De certa forma, os motivos distintos apontados no final do segundo parágrafo justificam um “retorno” a 1968, quando a mobilização de caráter mais radical-coletivista irrompeu com mais intensidade (nos termos que um sociólogo como Jeffrey Alexander entende, mas outros também parecem ter percebido isso), em um momento de transformação do capitalismo.
Desta forma, sem querer engessar demais, mas recorrendo à análise esquemática proposta por Alexander (1995), até que ponto, os protestos árabes não remetem à busca da “sociedade civil” (esta noção “guarda-chuva”) destes países (articulada globalmente) por chegar a um binômio democracia/mercado, tendo o capitalismo como código comum, atualmente hegemônico em um olhar global (se esse for possível, claro...)?
Por outro lado, como podemos encarar os motivos espanhóis (e, antes, portugueses) como parte dos processos de transformação capitalista que se intensificaram na década de 1970?
4- Neste sentido, vejo que os pontos comuns apresentados no final do segundo parágrafo do insight do Marco apresentam dois pontos que são “novos”: a Internet como “mediadora” que aumenta a “rapidez” dos acontecimentos.
Neste sentido, sem a configuração destas “tecnologias, práticas e contextos” que se convencionou chamar de Internet, a partir da década de 1960, estas mobilizações árabes e mediterrâneas estariam acontecendo desta forma, ou mesmo estariam acontecendo?
Assim, também no cenário da década de 1960 (as origens da Internet remetem a 1969 e a um contexto de Guerra Fria e isso é papo longo que esboço um resumo, e apenas esboço, assumindo todos os riscos dos saltos e lacunas históricas que deixo...). Ao longo da década de 1970, estas tecnologias comunicacionais e informacionais inicialmente projetadas para fins militares foram apropriadas pelos movimentos de contracultura, configurando atualmente possibilidades de mediar processos de luta por autonomia, mas também pelo aumento de controle, que estão em jogo na esfera pública contemporânea.
Bem, para esses 4 tópicos me concentrei apenas nos dois primeiros parágrafos... E, hoje, fico por aqui... Pausa pro café, pro domingo e uma abertura para um debate por meio dos comentários. Amanhã prossigo no artigo. Fiquem à vontade... Mais pro final da tarde, volto aqui...
Cynthia Hamlin - Talvez interesse, Marcelo:http://quecazzo.blogspot.com/2011/02/twitter-revolutions.html
Rodrigo Luz - Embora ninguém tome banho duas vezes no mesmo rio, eis que a dialética da vida pode nos levar a movimentos semelhantes aos de maio de 1968. O que já foi torna a acontecer, mas sempre de uma maneira diferente.
Marco Aurélio Nogueira - Acho que o Rodrigo fez uma observação importante, que eu também quase fiz no artigo do Estadão. Há um quê de maio de 68 no ar, é verdade, mas o contexto é muito diferente, apresentando coisas novas e retomando algumas coisas velhas. Por exemplo, não há mais uma revolução sexual a ser feita, nem o M15M espanhol parece ter a radicalidade antipolítica que existia em 68. Não se entra 2 vezes no mesmo rio, corretíssimo!
Marco Aurélio Nogueira - Outra coisa: se formos coerentes até a raiz com o argumento de que a internet "acelera" a política, vamos precisar avaliar em que medida essa aceleração não contém o risco de tornar a política algo tão passageiro e fugaz quanto um post no FB ou num blog. Se tudo é rápido e fugaz na internet, a política feita nela padeceria do mesmo "mal". Deve-se pensar nisso, creio. Por isso a preocupação que tive no artigo de realçar que uma eventual ciberpolítica só produzirá efeitos políticos de fato se não se descolar da vida real, etc. Nenhum movimento, de resto, pode se afirmar caso permaneça só no virtual. Aí permanecendo, ou seja, não conseguindo se traduzir em atos práticos, tenderá a desaparecer tão rapidamente quanto surgiu, dada a própria natureza da rede.
Marcelo Castañeda - Bom debate! Ainda acredito que a história só se repete como tragédia ou como farsa, mas existe um processo histórico que não começa em 2011, foi apenas essa a intenção de contextualizar o que o bom insight que o artigo do Marco traz.
Outro aspecto é quanto à aceleração do processo de mobilização (e /ou estreitamente relacionada com uma consequente reconfiguração das estruturas dos movimentos...) como uma pista muito tentadora a ser generalizada.
Como se trata de fenômeno recente (e em curso...), ainda estou a levantar bibliografia que traga casos empíricos já analisados.
No entanto, creio que existe no artigo o uso de uma falsa oposição entre real e virtual (que Pierre Levy enfrentou bem em seu livro "Cibercultura", de 1997).
Como o artigo do Marco trata deste aspecto em alguns pontos, porém além do segundo parágrafo, vou comentar mais à frente.
Neste ritmo, até o final da semana que se inicia, damos conta de comentar o artigo de forma minuciosa.
No mais, agradeço ao Rodrigo Luz e a Cynthia Hamlin pelos comentários e dicas (Celi havia compartilhado este post antes de assumirmos este vínculo que temos atualmente por aqui, Cynthia!), bem como ao Marco Aurélio Nogueira pela disponibilidade e generosidade com o diálogo em pauta.
Rodrigo Luz - Eu sinto que há cheiro de mudanças no ar! Esta primavera árabe tem sido bem significativa e eu a comparo com o movimento pró-democracia ocorrido na Europa do Leste no final da década de 80. Neste sentido, gostaria de compartilhar com vocês o texto que eu havia escrito em fevereiro no meu blogue após a queda do ditador egípcio: http://doutorrodrigoluz.blogspot.com/2011/02/egito-sera-que-uma-onda-de-democracia.html Mas, por outro lado, não discordo totalmente do Obama quando ele disse que esta luta por democracia no mundo árabe pode demorar bastante e aí eu penso que, no fundo, os USA podem estar trabalhando para retardar o processo a fim de definir as coisas ao gosto das potências.
Marco Aurélio Nogueira - Legal o texto, Rodrigo. Acabei de ler, e compartilho com vc o desejo de que a democracia avance no Oriente Médio. O mundo todo respiraria melhor e a população da região mais ainda.
Rodrigo Luz - E pensar que o Médio Oriente já poderia estar bem mais avançado em termos de democracia se não fosse o fundamentalismo religioso que foi apoiado pelos USA durante a Guerra Fria... Felizmente a população no mundo árabe parece ser de maioria jovem e esta geração de até 30 anos está mudando a cara de seus países, sendo que não me surpreenderia se, daqui algumas décadas os árabes já estiverem com mais liberdade do que os próprios ocidentais. Atualmente vejo a Europa dando uns passos para trás...
Marcelo Castañeda - Bom dia, Marco! Seguem comentários com base nos parágrafos 3, 4 e 5 do seu artigo de sábado no Estadão.
Reconfigurei minhas opções de privacidade para "amigos dos amigos": as pessoas da sua rede podem comentar a vontade.
Para quem pegou este "bonde" agora, este diálogo começou ontem de manhã. Para saber mais, vá aos murais (meu ou do Marco). Para participar, basta comentar!
1- A questão de um aumento na velocidade inicial dos protestos parece ser uma pista bem concreta a seguir para entender um “protesto ativado por redes sociais”, que “repercute instantaneamente no resto do mundo” (3º parágrafo do artigo de Marco).
Ainda neste quesito de “aumento da velocidade de deflagração das ações de protesto”, outro aspecto chama atenção: as amplas possibilidades de articulações que não seriam possíveis sem a existência destas “tecnologias, práticas e contextos” da Internet.
Uma coisa que fiquei pensando acerca do que escrevi ontem sobre as possíveis origens desta “onda 2011”, que situei no final da década de 1960 (de forma arbitrária para não cair num exercício fenomenológico de busca das origens, tendo em vista que isso não teria um fim tão cedo...) também me leva a uma interessante pista a seguir: sendo contemporâneos (da década de 1960), tanto as formas de organização dos movimentos em rede (refazendo a estrutura piramidal que predominava no movimento sindical da época em uma espécie de reengenharia dos movimentos, para usar um termo provocativo...rs...), quanto a Internet, ao se “encontrarem” geram uma mudança nas ações de protesto social.
‎2- Acho que a prudência recomendada pelo Marco no 4º parágrafo foi um elemento que me levou a propor este diálogo.
Até que ponto nossas associações são tecidas considerando o que esperamos que vá acontecer mediante esquemas teóricos rígidos do tipo “causa-agência-efeito”?
Acredito que, dependendo de nossa posição para desenvolver uma perspectiva, isso pode ser determinante. Se estou apenas interessado em entender um fenômeno (mesmo tendo consciência de que, com isso, já o modifico, pois descarto uma possibilidade concreta de distanciamento, respeitando quem acredita nisso, claro...) vou configurar um cenário que reflita isso. Da mesma forma, se estou engajado em um movimento, como ciberativista que seja, minha visão será outra. Assim, se estou nestas duas posições simultaneamente (e aí, viva a relatividade...) a perspectiva muda.
Daí, este diálogo aqui no Facebook, em dois murais, pode se configurar em um mosaico perspectivista...
‎3- Essa “ordem aparentemente caótica” e a busca por aquilo que muitos chamam de uma “nova cultura política” que emerge vem sendo alimentada por um participante tecnológico (ou heterogêneo), que cada vez mais desempenha um papel de ator na medida em que a agência passa pela sua mediação.
Até que ponto, essa “proeminência” de tecnologias pode subverter as noções de agência com as quais a sociologia lida nas suas análises? Como proceder nesta subversão analítica sem cair em um determinismo tecnológico, que seria um reducionismo?
Até que ponto as tecnologias da Internet, que não vejo como separá-las das práticas e contextos envolvidos, não são apenas meros intermediários, mas mediadores dos processos de mobilização e protestos contemporâneos?
Em relação à "festa" aliada à determinação, acredito que o proesto pode ser visto sobre esse prisma também. Afinal, o que dizer de uma política "séria" hoje em dia? Acredito que esse alargamento da política rumo ao cotidiano, depois de ter cumprido faz parte de um processo em curso.
Agora, me lembro das reflexões teóricas de um sociólogo contestado (em especial pela sua participação eminente no governo Tony Blair, bem como pela sua ausência empírica que o leva a uma hiperteorização social) como Anthony Giddens possa ser revisitado em seu Para além da esquerda e da direita – o futuro da política radical (1996).
Não que Giddens tenha sido o único a apontar isso. De repente, Melucci ("A invenção do presente") é outra boa lente teórica para olhar essa horizontalização.
Enfim, a ideia é que seja apenas um "start" de uma discussão... Por hoje é só...
Ferdinand Rafols - Liberdade é o que conecta os indivíduos... O que há hoje são movimentos orgânicos e multidimensionais. É difícil determinar onde terminam os eventos... No final, isso tudo me parece uma vitória do liberalismo.
Marco Aurélio Nogueira - Ferdinand, é uma vitória do liberalismo, claro, mas não só dele e menos ainda do liberalismo econômico, tipo neoliberalismo. O liberalismo democrático ganha com tudo isso, sobretudo porque enfatiza doutrinariamente os valores da liberdade e do indivíduo, que são centrais nas redes. Mas as redes também podem incluir outros valores que ultrapassem o liberalismo, como a igualdade substantiva, a democracia social, a valorização do Estado. Acho que estamos diante de um campo aberto, onde todas as bandeiras podem ser hasteadas. O que prevalecerá e quem ganhará são questões impossíveis de serem respondidas agora e, na minha opinião, não serão respondidas nas "redes", mas fora delas e além delas.
Marco Aurélio Nogueira - Um comentário ao Marcelo. Redes sempre existiram. Política é ação em rede, predominantemente.  Lembro de uma famosa passagem do Manifesto, de Marx, onde se salientava que a luta dos operários começa na fábrica, depois inclui o bairro, a cidade, o país e progressivamente o mundo. Isso pode ser entendido em sentido metafórico, mas não deixa de ser a descrição de um componente intrínseco a toda ação que visa o poder ou a hegemonia. Por isso acho complicado fixar uma data para indicar "onde tudo começou". O que houve de efetivamente novo no final da década de 60 para que se ponha ali o início de alguma coisa? Maio de 68? Em termos políticos práticos, não acho que tenha havido novidade suficiente, mas isso é algo para ser pensado com mais calma.
Marco Aurélio Nogueira - Também não gosto muito da ideia de "novos movimentos sociais". Novos em que seriam eles? Uma coisa são os protagonistas, as agendas e os procedimentos adotados em praça pública, outra coisa é a forma organizacional. Se não houver inovação em tudo isso, por que "novos movimentos"? Não conheço em profundidade a literatura sugerida pelo Marcelo (Melucci, por exemplo), e posso rever essa posição. Mas a impressão que tenho é que falar em "novos movimentos" é uma forma cômoda de escapar de uma definição mais criteriosa e é também, ainda que não necessariamente de modo consciente, um modo de elogiar e valorizar um estilo de reivindicação e luta que rejeita partidos e é frontalmente contra o Estado -- um estilo que, no meu modo gramsciano de ser, não está vocacionada para disputar hegemonia, mas só para estocar e incomodar o sistema (o que, claro, não é pouca coisa).
Marcelo Castañeda - Marco, compartilho contigo a impressão sobre a denominação "novos movimentos sociais" (acredito que esteja referenciada em Touraine, mas sem certeza).
Quanto à questão das "redes": hoje em dia o campo em que as análises que tratam de redes proliferam (vide diagnóstico de Boltanski & Chiapello) tudo que aconteceu pode ser apreciado desta forma.
Da mesma forma, tudo que não considere o jogo hegemônico/contra-hegemônico perde força em análises que partem de uma perspectiva gramsciana.
Mas quando me refiro às ações em rede que se intensificam no fim da década de 60 até hoje, trata-se de uma impressão minha de que há algo distinto de uma estrutura piramidal que o movimento sindical (que, talvez, para lembrar  Touraine, fosse o "antigo" modo de se mobilizar). Se fosse igual, hoje estaríamos condenados cavalo a cavalo à "profecia" de Michels sobre a aristocracia operária...
Uma mudança clara que percebo a partir (nada muito exato nem determinista na linha do tempo) é o paulatino abandono da ideia de um sujeito coletivo que fosse nos trazer a redenção, levando a uma pluralidade que hoje parece estar sendo novamente transformada em uma ausência de sujeito (mas, neste ponto, já não posso avançar... Vai começar a palestra aqui no IESP/UERJ). A prosa é boa...
Rubia Araújo Ramos - Olá, Marcelo. Fui aluna do professor Marco Aurélio Nogueira e estudo o pensamento de Touraine. Até onde pude avançar, segundo o autor esses movimentos como o 15 M e todos os outros que denominamos de "movimentos de rede" não são movimentos sociais, mas sim um diferente modo de ação coletiva que deve ser observado, sobretudo porque é novo, diferente, complexo e carrega uma serie de elementos sociais, políticos e culturais que são relevantes. Mas de fato, assim como o prof. Marco disse, essas manifestações acabam incomodando o sistema e logo morrem. Agora, se olharmos a partir do indivíduo que se torna individualizado e mais preocupado com a representação de si mesmo, a análise pode tomar outro rumo.
Marcelo Castañeda - Oi Rubia, obrigado! Acredito que você está correta em relação ao pensamento de. Brincadeiras a parte, o importante, ou interessante para mim, é que você traz a questão da ação coletiva, campo que entendo ser mais amplo e heterogêneo que os movimentos sociais.
Esse modo de ação "diferente" que você sinaliza muito me interessa na noção de repertórios de ação coletiva, trabalhada pelo Charles Tilly.
Neste sentido, estes movimentos de 1968 (que na Europa são denominados "novos movimentos sociais" por "não sei quem" agora, pois isso não me importa neste momento... aliás, aqui me sinto conversando com vocês, como uma simulação de debate ao vivo, em que não há como citar com precisão o livro e autor pelo fato deles não estarem em sua frente... nem em sua mente naquele instante...) estão aí (ecológico, feminismo, direitos humanos, sexualidade, gênero, étnicos...) modificados, democratizando a esfera estatal, ou seja, eles desempenharam um papel que mudou de alguma forma (e por isso a discussão) que, na minha singela opinião, tem uma relação clara para entender o que a Internet hoje representa para este campo.
Agora, o que até justifica minha aparente despreocupação com estas sociologias da ação, uma questão que o artigo do Marco converge com a minha pesquisa leva a perguntar: como olhar para a Internet vendo-a apenas como meio de intermediação e não como mediador de agências em diferentes escalas de tempo-espaço?
Este é um debate necessário, no meu ponto de vista, para entender os protestos contemporâneos, a não ser que queiramos manter as tecnologias como um ator invisível na configuração de agências e poderes no mundo atual... Mas como fazer isso hoje? Quem está pensando esses "atores heterogêneos"? Venho encontrando bons insights em John Law (mais sensato) ou em Bruno Latour (mais viagem ontológica...).
Marco Aurélio Nogueira - Muito boa essa intervenção da Rubia! E bom tb teu comentário, Marcelo. Agora não posso escrever pois estou em trânsito. Mais à noite, tento acrescentar algo, mas acho que o debate está bem encaminhado.
Sergio Storch - ‎Marco Aurélio Nogueira e Marcelo. Reparem que algumas questões colocadas no artigo do Marco estão sendo respondidas de dentro das comunidades virtuais de desenvolvedores de TI, que acabam sendo atores políticos importantes. Os rapazes da Transparência Hacker (ver Pedro Markun), nada ingênuos, jogam para mudar o sistema por dentro. Reúnem-se hoje com alguns vereadores p discutir a necessidade de elaboração de substitutivo para o PL 226/2011, que estabelece diretrizes para a publicação de dados e informações pela Prefeitura de São Paulo em formato eletrônico e aberto. Some-se isso aos recursos que conquistamos de projetos de lei de iniciativa popular. Num canto a praça Tahrir, noutro a movimentação na Espanha, e aqui os meninos se aliam a franjas do sistema político para mudar o comportamento das instituições. Hoje 14h00 no gabinete do vereador Tião Farias. E há muito mais iniciativas. Marcelo, na sua pesquisa vale a pena ficar por perto.
Marcelo Castañeda - Sérgio, muito bom! Tenho grande interesse no movimento hacker (ou desenvolvedores de TI, tendo em vista a confusão de termos entre hacker e cracker, que seria um elemento "nocivo"...). Esse interesse não deve se materializar na minha pesquisa de doutorado, na medida em que devo recortar um campo de observações. Mas, existem pesquisadores de SP inseridos neste debate do software livre, bem como de análises bem recentes sobre fenômenos como os deflagrados pela ação do Wikileaks, podendo citar o Sérgio Amadeu (da UFABC, como sendo um dos que tenho contato...). Enfim, acredito que num mundo cibernético, a contestação de fato tende a se dar no que você chama de franjas, mais especificamente na relação de abertura de códigos de sistema computacional... E isso parece estar em curso. Apenas não devo tratar disso na tese... Quem sabe no futuro? Mas a dica é importante e tem total relação com esta discussão!
Marcelo Castañeda - Oi Marco, bom dia! Mudando o sentido, trago mais perguntas do que colocações sobre a parte que envolve os parágrafos 5 (voltei nele rapidinho...), 6, 7 e 8 do seu artigo. Na rodada seguinte, que não sei se será amanhã, tento fechar a leitura. Como não temos pressa...
Segue abaixo, junto com o artigo para quem quiser participar.
Ainda em relação ao parágrafo 5: Essa “outra política” tem o que de específico que a distingue?  Essa forma de atuação “mais livre e horizontal…” seria possível sem a Internet?
Em relação ao parágrafo 6: Se for fato que "As organizações políticas e sindicais de esquerda entenderam o recado e se mantiveram à margem...", não se trata de um elemento de distinção que coloca em xeque tanto a perspectiva de um sujeito coletivo redentor, quanto de uma multiplicidade de sujeitos coletivos, trazida pelos movimentos que eclodiram no final da década de 1960?
O pressuposto implícito na passagem "o fogo dirige-se contra a classe política" confirma uma crise da institucionalidade política? Com crise não entendo uma “morte” da política, atividade humana constitutiva... Cabe destacar o que Manuel Castells vem produzindo a respeito, em especial no seu mais recente livro Communication Power (que estou lendo...).
Em relação ao parágrafo 7: Me parece que, se considerarmos “a sério” (ou concretamente...) o posicionamento destes manifestantes, será que podemos considerar tão paradoxal a vitória da “extrema-direita”? Até que ponto a manifestação sinaliza para uma indiferença pela política institucional? Sendo indiferentes, tanto faz se a vitória política nesta arena institucional seja da esquerda ou da direita, não?
Não seria um alerta para um modelo específico de democracia representativa? Fala-se muito em Chávez na América Latina, mas me chama atenção o que entendo ser uma baixa ressonância midiática e de informação acerca das mudanças institucionais em curso na Bolívia... Alguém saberia dizer sobre? Me parece, do pouco que já ouvi falar, que Liñera (o vice de Morales, sociólogo...) vem empreendendo mudanças nos processos de representação e decisão política, criando uma atmosfera que remete a uma nova institucionalidade, que difere do modelo liberal de democracia representativa...
Em relação ao parágrafo 8: Ao referenciar um ""espírito" de uma nova esquerda", será que não há uma esperança (implícita aqui) de que uma manifestação que se posiciona contra as instituições políticas (mediante um claro repúdio tanto da esquerda quanto da direita...) de que esses manifestantes venham a configurar uma nova esquerda? Ainda assim, será que essa nova esquerda vai se contrapor a institucionalidade presente, pode ser assim denominada, na medida em que parece se opor tanto à direita quanto à “velha” esquerda? A terminologia é adequada aos fatos construídos?
Será que a força, neste caso, não se reflete na permanência como “exemplo”? O que seria desaparecer se permanece vivo na memória? E as mudanças provocadas a partir deste instante de protesto contra as instituições políticas (no sentido de entender a esquerda e a direita como institucionalidades...)?
Neste sentido, volto à análise de Giddens, em 1996, em que o autor sinaliza este movimento de alargamento e transbordamento da política em curso a partir do século XIX (economia política); ao longo do século XX (atinge a "sociedade", ainda que estas esferas não sejam autônomas, em um exercício analítico, o que fica evidente, enquanto "ponta de um iceberg", entre as décadas de 50 e 70 em um ciclo coletivo de protestos, que se tomarmos um autor como Hirschman, 1983, como referência, pode estar retornando agora...); para atingir o cotidiano a partir da última década do século XX... Será que é uma lente adequada para entender um movimento de longo prazo?
Marco Aurélio Nogueira - Marcelo, devíamos organizar um seminário ao vivo a esse respeito! São questões importantes e complicadas as que vc apresenta. Vou pegar uma delas, que tem me desafiado desde que publiquei um livrinho chamado Em Defesa da Política, já faz bem uns 10 anos. O que seria uma "nova política" ou uma “nova esquerda" hoje, nas condições atuais? Friso estas condições atuais para deixar de lado, como ponto de referência essencial, a ideia marxista e sobretudo gramsciana de que os comunistas, na história, introduziram um outro modo de fazer política e de conceber o partido político. É o ponto de referência dessa discussão, creio. Lá atrás, Gramsci achava por exemplo que o partido comunista "novo" deveria escapar do centralismo burocrático e fazer viver a democracia dentro dele, sem abandonar a necessária centralidade na tomada de decisões. Seria novo, também, porque tomaria a classe operária como critério mas iria além dela, incorporando diferentes setores sociais e oferecendo respostas positivas a eles. E, por fim, porque não teria no marxismo a única luz teórica ou doutrinária. Seria doutrinariamente plural. O partido novo é um fundador de Estados, ou seja, uma entidade disposta ao governo e à construção de pactos, não somente um "agitador de interesses" ou um motor de oposição.
Marco Aurélio Nogueira - Continuando. Hoje, um partido novo teria de refletir um modo novo de fazer política, e tudo isso teria de refletir as condições em que vivemos. Nossa época é individualizadora e estruturalmente democrática (não necessariamente em termos de democracia política, em termos de regime, mas sim em termos de relacionamentos sociais). Não vivemos aceitando passivamente hierarquias e pacotes de decisões. A tradução disso seria um aumento do "desejo de participar" e de se fazer ouvir, de questionar, contribuir, resolver problemas, etc. Se a política não se abrir para isso e se mantiver fechada em esquemas hierárquicos e decisionistas, o diálogo não se estabelecerá entre ela e a sociedade. Sei que é pouco, e é muito genérico, mas tenho tentado caminhar por aí. Na medida do possível, voltarei ao ponto.
Marcelo Castañeda - Quando discuti o livro Maquiavel, a política e o Estado moderno, de Gramsci, na disciplina de sociologia política com a Leonilde, me passou a impressão de que os movimentos sociais poderiam ser vistos a partir desta noção de "partido" (ou "novo partido") que o italiano apresenta...
Olha, a ideia do seminário é bacana, mas são perguntas que também me faço e que te coloco...rs... Mas vamos indo, com calma, afinal agora falta "apenas" o que ainda continua sendo um "obstáculo disciplinar...": entender as tecnologias como construção social...
Estamos caminhando e construindo sintonias... por aí, vamos bem!
Eduardo Ribeiro Dos Santos - Não sou especialista no assunto, mas achei muito boa a posição do Marco, pois o que me parece premente é a necessidade de democratizar a democracia. Existem instrumentos vários que podem ser utilizados para ampliar a promessa democrática, especialmente no campo jurídico, mas estamos num tempo em que amplos estratos da população estão apartados dos meios de efetivar o poder político, desacreditados da atuação de partidos e sem conhecimento de todas as possibilidades existentes que conduzam á emancipação.
Se antes, nos anos de chumbo, a violência estatal era o meio mais utilizado para reprimir movimentos e impedir a organização, hoje me parece claro que a alienação é o maior entrave para a democracia. Temos todo um arcabouço de possibilidades reais que só necessitam de um mínimo de conhecimento técnico para serem efetivadas. Estes aparatos estão aí, pacientemente repousando em leis não muito conhecidas e projetos que esperam materialização, porém não se realizam devido à falta de um atuar direcionado de uns, e um comprometimento maior de outros.
Penso que vivenciamos um momento muito especial para realizações democráticas. Os partidos podem sim primar por uma atuação mais direta e democrática, mas penso que os esforços deveriam ser também direcionados à conscientização do maior número possível de pessoas para que elas mesmas direcionem seus projetos, criem coletivos, ampliem os debates, e efetivem a democracia de forma direta.
A internet mostrou-se como um excelente modo de convergir pensamentos que partilham dos mesmos interesses.
Talvez o grande desafio seja fazer com que essa grande força virtual possa realmente combater a apatia política a que estamos imersos, e transformar de maneira positiva o mundo real. Penso ser um bom caminho, que com a devida atenção pode dar ensejo a práticas realmente revolucionárias. Realmente, vivenciamos um momento ímpar que merece ser mais bem trabalhado.  Saudações Ácratas
Marco Aurélio Nogueira - Concordo com vc, Eduardo. A alienação é o maior entrave. E acrescentaria: ao lado dela, misturado com ela, quem sabe a impulsionando, eu poria a dispersão, a dificuldade de fixar focos e estabelecer prioridades e de dar conta de tantas demandas e solicitações dos mais variados tipos, dos profissionais aos existenciais. Paradoxalmente, a internet exponencia isso mas pode, ao mesmo tempo, ser uma saída para isso. Como, só o Marcelo saberá, depois que resolver os problemas teóricos dele...
Marcelo Castañeda - se fossem apenas teóricos (que, de fato existem...) estaria mais feliz do que atualmente...rs... Se chegar perto de boas questões já fico bem tranquilo, pois responder vai ser complicado, ao menos sozinho, por isso já vou antecipando angústias, assim fica mais fácil de levar...rs...
Eduardo Ribeiro Dos Santos - Você tocou num ponto que considero de suma importância. Essa dualidade da internet. Eu sempre fui muito arisco com a net. Sempre dizia que jamais poderia ser ela fonte segura de pesquisa. Hoje o pensamento é totalmente oposto. As possibilidades que ela oferta são gigantescas. O google books e seus milhões de livros, as redes de compartilhamento de arquivos, o youtube, onde pessoas anônimas legendam vídeos que jamais teríamos a possibilidade de assistir devido às barreiras da língua, os artigos que especialistas escrevem gratuitamente....nossa...muitas mesmo. Mas são tantas opções que é muito fácil ficar perdido.
Tanto é assim que embora haja tremendas possibilidades de emancipação, a maior parte dos recursos da internet tem servido apenas para perpetuar a alienação, agora sem limites!
Gosto da palavra dispersão que você citou. O youtube é um bom exemplo. A dispersão que antes era semanal na Tv, agora é atemporal. A qualquer hora tu podes entrar e ficar horas vendo e revendo milhares de vídeos que não adicionam coisa alguma, ao contrário emburrecem ou embrutecem a mente.
Em contrapartida, talvez de 3 a 5% do conteúdo da internet, o que poderíamos chamar de "internet emancipatória", têm um valor inestimável que pode sim servir de instrumento apto a educar, conscientizar, debater e criar opções fáticas de emancipação. A internet pode sim ser uma das várias alternativas para a realização da democracia, mas não pode ser vista como a melhor delas ou a única.
As ações se efetivam no mundo real. Embora muito se fale sobre a "revolução árabe" e a internet, que penso ser um fenômeno interessante neste mundo tão imerso no individualismo, pelo que sei apenas 20% dos participantes possuíam acesso à internet.
Ela pode até ter sido uma catalisadora, mas a grande maioria das pessoas que lotaram a praça Tahrir, eram excluídos sociais. Invisíveis querendo se tornar visíveis. Algo similar está ocorrendo com o movimento 15-m na Espanha, nos protestos na Grécia dentre tantos outros movimentos que a mídia hegemônica não mostra.
Aliás, ela só aumenta essa dispersão quando dá um valor elevado às redes sociais em detrimento das pessoas reais que lá estavam, como se o objeto fosse mais importante que a pessoa que o manipula.
Como se organizar pessoas fosse algo "mágico" ou impossível de ser efetivado aqui e agora. Talvez seja essa realidade que deva ser mudada.
Da parte dos intelectuais cabe a nobre missão de destruir ídolos, desmascarar ideologias e mostrar a verdade, por mais dolorosa que ela seja. Ao demais, como eu, cabe aprender a respeitar nossas posições divergentes, praticar a alteridade, ampliar a fraternidade e nos organizar politicamente com objetivos e metas determinadas.
É mostrar que protestos são diferentes de desobediência civil, que a autogestão e a democracia direta não são fábulas. O caminho está aberto, e é fascinante. Saudações Ácratas
Maria José Carneiro - Oi, Marcelo esse debate é realmente empolgante. Não li todas as opiniões, estou entrando no bonde andando, mas fica uma pergunta, será que temos de analisar esse movimento de dentro? Ele não seria tb o resultado da falência das organizações políticas e da famosa "esquerda".
Vemos a Itália, por exemplo, com todo o seu passado cai nas mãos de um Berlusconi e a oposição fica assistindo de camarote. As manifestações contrárias a ele são tb mobilizadas pelas redes. A meu ver, correndo o risco de simplificação, estamos vivendo um momento histórico de exacerbação de algo que chamaria (ai meu Deus, devo estar falando a maior besteira, não sou cientista política!) de "autoritarismo democrático" e isso esvazia as organizações políticas. Mas termino com um parágrafo do Marco Aurélio que, a meu ver, dá a pista:
O parágrafo ficou de fora: “Seria trágico, por exemplo, se esse ativismo se pusesse contra a democracia representativa ou se a sociedade civil por ele projetada deixasse de ter um Estado como referência. O ciberespaço e as ações antissistêmicas só podem produzir resultados políticos se não se separarem dos embates sociais concretos, das tradições enraizadas, das instituições que organizam o mundo real".
Marcelo Castañeda - Zezé! Bem-vinda! O que sinto do que estamos trocando aqui, e do que tô tentando entender, passa pelo ponto que você traz, ou seja, não dá para entender o papel (ou a agência, ou a mediação, esses termos ainda não estão tão claros pra mim...) da Internet se consideramos apenas o ciberespaço...
Por isso, acredito que esse debate pode trazer a demanda de um olhar que passe a considerar as tecnologias como construções sociais e não apenas instrumentos (ou intermediários...) da ação humana.
Bem, Zezé, estou entrando na sessão do Seminário de Tese no CPDA... O debate começou no domingo de manhã, esta é a terceira rodada... Seja bem-vinda!
Marcelo Castañeda - ‎"Movimentos animados por redes não precisam ser prisioneiros do universo virtual. Podem agir no mundo concreto. Debatem, agitam e pressionam, mas vivem sob a constante ameaça de diluição, em decorrência da dificuldade que têm de traçar uma rota planejada ou formar um todo mais articulado. Se cada um pretende mudar as coisas a seu modo, como produzir ação coletiva?" (Marco Aurélio Nogueira, 28/5).
Oi Marco, andei meio atolado nestas manhãs de quarta e quinta, mas continuo nosso debate, me restringindo a este interessante nono parágrafo... Vamos, com calma, mas vamos!
1- Acho que cabe problematizar o que seria este “universo virtual”. Assim, até que ponto configura uma prisão ou uma expansão/extensão da ideia de esfera civil ou esfera pública?
Até que ponto essa oposição entre “universo virtual” e “mundo concreto” despreza a materialidade desta esfera tecnológica em que se desempenham práticas e se configuram situações em contextos "concretos"?
Continuando nesta problematização, até que ponto as ações empreendidas em contextos como os que foram configurados pelo movimento zapatista (1994 a 1996), bem como pelos protestos antiglobalização, cujo emblema mais evidente pode ser Seattle (1999, protestos contra a rodada da OMC...) traduzem uma rota planejada ou formam um todo mais articulado?
A meu ver, este "caos organizado" parece ter algo mais que uma facilidade de dispersão e diluição. Aliás, indo para um pólo oposto, historicamente, quais são os movimentos que não passam por isso e se perpetuam em um crescente?
‎2- Será que na afirmação de que "cada um pretende mudar as coisas a seu modo" não está implícito um ator racional que age "soberanamente"?
Daí, que uma ação coletiva depende da convergência de interesses individuais para se perpetuar... Mas o contraponto não se verifica, na medida em que, novamente, parece que os movimentos possuem uma identidade coletiva substantiva, quando, de fato, esta identidade é construída para transparecer uma unidade frente aquele contra quem se promove o conflito, conforme, por exemplo, Alexander (1998).
Então, será que estamos tratando de indivíduos soberanos que se manifestam pontualmente, e de maneira divergente, ou de uma identidade coletiva que é mais pulverizada, descentrada, mais individualizada do que institucionalizada e aparentemente caótica, que apresenta uma ordem/padrão que não é tão claro quanto quando estamos tratando de uma estrutura centralizada?
‎3 - Neste ponto, acredito cada vez mais, mediante exploração empírica inicial que venho desenvolvendo, e no sentido de levantar uma discussão mais do que afirmar algo, de que estas tecnologias não são apenas meios intermediários para o desempenho de ações humanas, mas mediadores eficientes no sentido de criar condições para que a agência aconteça, o que não seria possível sem a existência deles da forma que temos hoje...
Mas, antes de certeza, trata-se de uma suspeita que pode ou não ocorrer, dependendo para isso de uma observação mais sistemática e que considere diferentes contextos e pontos de vista e perspectivas.
Fico pensando em reunir essa discussão toda em um texto único, mas vamos que vamos!
Por enquanto, é isso... Faltam 3... abração!
Daniele Lima - Quando acabar, me envia... sei que não sou uma aluna, mas uma discípula. Abraço!
Patricia Pavesi  - Mestre Marcelo, mandou bem!
Marco Aurélio Nogueira - Marcelo, a ideia de reunir as conversas num texto único é ótima! Fiz isso com outras "mesas-redondas" que ajudei a organizar por aqui: juntei tudo e pus no meu blog. Foi bem legal. Pense no que poderemos fazer em relação a isso. O importante é que o resultado circule, creio, pois assim chegará mais pessoas e ouvirá mais opiniões.
Patricia Pavesi – “acredito cada vez mais, mediante exploração empírica inicial que venho desenvolvendo, e no sentido de levantar uma discussão mais do que afirmar algo, de que estas tecnologias não são apenas meios intermediários para o desempenho de ações humanas, mas mediadores eficientes no sentido de criar condições para que a agência aconteça, o que não seria possível sem a existência deles da forma que temos hoje “
Marco Aurélio Nogueira - Quanto aos teus comentários, o ponto mais relevante é o da presença implícita de um ator racional que agiria por cima. Pode ser que vc tenha razão, mas na minha cabeça, ao escrever aquilo, estava a questão da unidade, da totalização. Não preciso ter necessariamente um ator (um partido) para ter unidade, mas confesso que tenho dificuldades para visualizar como é que se materializaria a "ordem/padrão" sugerida por vc, aquela "identidade coletiva mais pulverizada, descentrada". É um ponto a ser discutido bastante, pois é muito fácil pensar nisso, mas muito difícil de traduzir isso em termos políticos.
Marco Aurélio Nogueira  - Também penso que as tecnologias são mais do que meros meios intermediários. O que se produz com elas não é um "espaço virtual" desprovido de concreticidade, mas é como que um "segundo concreto" que de alguma forma precisa ser integrado e articulado ao "primeiro concreto", o concreto real, digamos assim. Nem tudo para ser resolvida pelas interações virtuais, por mais que elas sejam reais. É verdade que o "caos organizado" possui mais do que facilidade de dispersão, mas a dispersão me parece ser parte integrante dele. O que não significa que seja necessariamente um problema. Mas é algo que precisa ser considerado, ao menos até o momento em que tenhamos aprendido a assimilar toda a multiplicidade de efeitos, toda a "nova linguagem" que está determinada pelas TICs.
Marcelo Castañeda - Marco, este debate tá indo bem, tuas colocações me fazem refletir sobre formas de operar em uma (plausível e demandada aqui) espécie de "sociologia política relacional" (nem sei se existe este termo...).
Isso implica em pensar (o que já se iniciou aqui, a meu ver...) desafios de diferentes ordens que se integram (epistemológica, política, metodológica, teórica...).
Essa reflexão se torna profícua na medida em que consigamos dar um "salto", que é produzir conhecimento sociológico nestes termos (aquilo que você fala em relação à prática política, eu estendo para as demais "ordens").  Assim, vejo que antes do fim previsto (analisar um artigo teu publicado no Estadão...) estamos em vias de iniciar uma discussão em um grupo que estuda redes (através da proposta do Sérgio).
Vou procurar "sistematizar" nossas inquietações em um texto, de múltipla autoria, pra darmos um start com este grupo. O que acha? Até meados da semana que vem, invento um tempo pra isso...
Ah! Pretendo passar uma semana em Sampa, falta definir qual (rs...), entre o final de junho e meados de julho, para umas entrevistas. Se for interessante a gente marca um papo juntando essas pessoas... Abraços! Bom dia!
Marco Aurélio Nogueira - Legal, Marcelo! Será ótimo se vc conseguir fazer o texto síntese. Dia 5 de julho saio de Sampa, fico 3 semanas fora, visitando minha filha. Se vc vier antes disso, certamente que nos veremos.
Marcelo Castañeda - Legal, Marco! Intenção vale mas não concretiza...rs... Eu pretendia ir neste período, mas olhei a (bendita) agenda e essa semana deve ser após o dia 15/8 (pode ser entre 15 a 21... por aí...). Então, fico de fazer essa síntese, daí a gente aquece a blogosfera também, usando nossos blogs... Vamos que vamos!