segunda-feira, 28 de novembro de 2011

A soma de todos os nossos malfeitos


Em torno da indignacao. Ilustração Cadu Tavares
Não seria preciso arder uma nova fogueira em Brasília – a do ministro do Trabalho, Carlos Lupi – para que a corrupção voltasse às manchetes. Não haveria como retornar ao primeiro plano algo que dele não sai há anos.
A primeira reação de quem se incomoda com a corrupção é apontar um culpado. Culpados evidentemente existem. Ninguém que esteja numa função de responsabilidade deixa passar como rotina certos procedimentos explosivos, que deslocam a tomada de decisões para a beira do precipício. Governar ou administrar é uma operação delicada, e quem vacila no cumprimento das obrigações e abre espaços para lobistas inescrupulosos, parentes vorazes, protegidos e amigos, ou deseja testar os limites da legalidade, não pode merecer perdão. Por bem menos muitos cidadãos são presos ou têm a vida reduzida a pó. Não há ingênuos na alta administração, muito menos anjos. Todos sabem distribuir favores, castigos e recompensas com a mesma desenvoltura. Ninguém rasga dinheiro, assina cheque em branco e pode alegar ter sido enganado. Porém, se sempre há culpados, nem sempre é fácil descobri-los ou atribuir as devidas responsabilidades na cadeia de comando da corrupção. Punições exemplares e cortes de cabeças coroadas são importantes, mas não desmontam esquemas.
A corrupção pode derrubar governos ou atrapalhar sua atuação. É uma arma de todas as oposições. Isto acaba por fazer com que denúncias e apurações fiquem envoltas numa névoa de suspeita. Serão os fatos aqueles mesmo ou tudo não passa de armação para desgastar o governo? Como as coisas hoje vêm a público de modo espetacular e ganham rápida difusão graças aos circuitos midiáticos, sempre haverá alguém para dizer que a “grande mídia golpista” está por trás dos escândalos. Tal tipo de acusação faz parte do jogo e ajuda a que muita gente reflua da luta anticorrupção por receio de ser confundido com os adversários de seu partido ou representante.
Corruptos e corruptores são malvistos. A petulância, a desfaçatez e a arrogância deles agridem a ética do cidadão comum, embora possam ser assimiladas pela ética dos políticos. Irritam e intimidam as pessoas, que procuram seguir com a vida tanto quanto possível longe de atritos com a legalidade. Quando a corrupção surge na esfera governamental e na política, o efeito é ainda pior, pois as pessoas tendem a perder a confiança que algum dia depositaram em seus representantes, transferindo isso para todo o sistema representativo.  Não é por acaso que a presidente Dilma cresça em prestígio quando afasta ministros suspeitos de atos ilícitos ou indignos. Perderá pontos se acobertá-los, permanecer indiferente ou paralisada diante deles. A ética do cidadão comum manifesta-se invariavelmente misturada com lampejos moralistas, podendo chegar mesmo a ser inteiramente comida por eles. Pode-se atacar a corrupção de um ponto de vista ético, político, econômico ou moral, cada um com seu mérito. É insensato, por exemplo, fazer como o ex-deputado José Dirceu, que dias atrás etiquetou as atuais denúncias de corrupção como “campanha moralista”. O que teria desejado dizer com isso? Que não é correto pensar a corrupção pelo registro do bom e do mau, de certo e do errado, ou que o correto seria interpretar certos desvios de conduta como sendo inevitáveis em quem tem responsabilidades governamentais?
Se quisermos descobrir como e porque a corrupção ressurge sem cessar, teremos de cortar mais fundo, ir além da caça aos culpados. A corrupção anda de braços dados com a desmoralização da política, dos políticos e de seus partidos. Nunca como hoje a classe política foi tão ruim, nunca os partidos foram tão frouxos e desorientados, nunca a política foi tão improdutiva. Na melhor das hipóteses, as pessoas esperam resultados dos governos em sentido estrito, do Poder Executivo, que costuma emergir cercado de pompa, inflado de expectativas e disfarçado de “vítima” de subordinados incompetentes e interesses poderosos. Um círculo, assim, se fecha: a má-qualidade da política fornece oxigênio para a corrupção e dificulta o combate a ela.
Mas não se trata só de má qualidade dos representantes. Políticos despreparados e sem visão social abrangente, tanto quanto corruptos e corruptores pendurados na administração pública, são impulsionados por defeitos sistêmicos. Nosso “presidencialismo de coalizão”, por exemplo, é parte importante do problema. Sem coalizões, os governos não governam; mas com elas, encharcadas que estão de interesses fisiológicos, ficam expostos a muitos malfeitos e dissonâncias, têm de carregar peso desnecessário e perdem coerência e unidade de ação. Embalada e protegida por este sistema, a corrupção se reproduz, governo após governo.
Por fim, há um fator que deriva da época. Sendo verdade que passamos a viver de modo mais rápido, individualizado e fora de controle, inseridos em redes e estruturas cortadas por riscos e crises permanentes, então ficou mais difícil controlar o que quer que seja. A corrupção adquiriu “vida própria”, atingindo áreas e pessoas antes tidas como inatingíveis. Também cresceu a percepção social dela, o que a torna ainda mais intolerável.
Isso não significa que somos impotentes perante este problema que se alimenta de hábitos seculares, bebe em muitas fontes e afeta tanto o setor público quanto o privado. Não poderemos, porém, eliminá-lo pela raiz se o reduzirmos à responsabilização pessoal ou acharmos que a solução virá da mera (e difícil) mobilização da sociedade civil. Avanços consistentes dependerão de múltiplas ações combinadas e só alçarão voo sustentável se estiverem articulados com uma perspectiva reformadora e democrática do Estado e da política, que entre outras coisas ajude a República brasileira a se tornar efetivamente republicana. [Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, 26/11/2011, p. A2].

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Leon Cakoff e a Escola de Sociologia

Escola de Sociologia e Política de São Paulo, 1972. Foto de Claudio Kahns
Quando o jornalista e crítico de cinema Leon Cakoff morreu, em outubro passado, pensei em escrever sobre ele aqui neste blog. Não tanto sobre ele ou sobre a Mostra Internacional de Cinema que ele idealizou e protagonizou durante tanto tempo. Mas sobre “nós”, o grupo de pessoas que com ele estudaram na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, entre 1969 e 1972. Seria também, inevitavelmente, um texto sobre como eu via o Leon, o que me lembrava dele e de como interpretara, nos anos 70, seu papel na nossa comunidade de estudantes de ciências sociais.
Faria sentido. Afinal, memórias são para serem recordadas e, quando possível, relatadas. Ao fazermos isso, nos reconhecemos a nós mesmos, reiteramos ou recuperamos identidades, interpretamos ou reinterpretamos a história, mesmo que em escala pequena, na dimensão da aventura pessoal, grupal.
A Escola de Sociologia e Política – ela não, mas as pessoas que conviveram nela em um momento particular – foi para mim bem mais do que a instituição que me deu um diploma de sociólogo. Ela me formou para a vida. Fez o que a universidade deveria fazer sempre. Forneceu-me a chance do amadurecimento. Entrei lá de um jeito, saí completamente de outro. Os que fizeram o mesmo percurso ficaram gravados na memória e jamais saberei dizer a cada um dele a importância que tiveram em minha biografia. Até mesmo porque foram poucos os que se mantiveram em contato, aprofundando amizades e companheirismos. A maioria foi separada pela vida.
Entre os que ficaram em contato, a conversa sobre a ESP é recorrente. Todos sonham em resgatar um dia aquela experiência, fazê-la falar. Estudamos lá em tempos difíceis, de ditadura, repressão, ameaças. A escola pequena e isolada nos protegia, e conseguimos estudar coisas e autores que estavam ausentes em outras faculdades. Fizemos política estudantil em grande estilo: como parte da luta contra uma ditadura que destruía o país, calava e reprimia, mas que não matava sonhos. Fomos democratas, subversivos, revolucionários, do jeito que deu. Acho que cumprimos algum papel. E melhoramos todos como pessoas.
Quando Cakoff morreu, alguns dos amigos daquela época conversaram entre si. Solidarizamo-nos com a memória do Leon a partir das nossas memórias. Entre telefonemas e e-mails, lembramos episódios e eventos que não saem da cabeça. Como a Santa Festa que organizamos em 1972, com direito a uma marcha pela cidade de São Paulo para divulgá-la. Não sei bem como, mas o passeio (uma esbórnia generalizada) foi filmado e eu fui o camera-man! Como a revista Di-Fusão, na qual publiquei minhas primeiras resenhas. Ou como as manifestações que fizemos contra o voto nas eleições de 1972 (creio). Numa delas, fui encarregado de entregar o manifesto que havíamos redigido para o então deputado Franco Montoro, do MDB, que iria à ESP como paraninfo de uma turma de formandos. Cumpri à risca a tarefa, tremendo de medo e orgulhoso do ato heroico.
Meu amigo Lúcio Flávio Pinto, colega daqueles anos e jornalista dos melhores, publicou um belo texto sobre Leon Cakoff no Jornal Pessoal que edita em Belém, Pará. Disse muitas coisas que eu diria se tivesse escrito o texto que planejara. Disse muito mais, valendo-se do seu talento como escritor e de seu faro de repórter.
Reproduzo-o abaixo com uma alteração na foto. A que ilustra este post também é do hoje cineasta Cláudio Kahns, e remonta ao tempo em que estudávamos na Escola. Estão nelas muitos dos meus colegas de turma. Leon não aparece, certamente porque na hora estava enfiado em algum cinema vendo um filme...
O texto de Lúcio, que aqui repercuto, nos ajuda a manter viva a memória de um tempo que ficou para sempre inscrito na história do Brasil. Um tempo duro, que conseguimos suportar e enfrentar com os recursos que tínhamos: estudando, namorando, fazendo política e festa. Recursos que, ontem como hoje, são revolucionários.

Os tempos sombrios e a alegria de viver
Lúcio Flávio Pinto
Publicado em Jornal Pessoal, Belém, nº 501, novembro de 2011.

Não conheci o Leon Cakoff famoso, que criou a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, reduto da fauna e flora cultural da cidade. Esse Leon morreu no dia 16 do mês passado. Tinha um ano a mais do que eu. Não era muito, mas pesou bastante nos tempos em que fomos alunos da Escola de Sociologia Política de São Paulo, na transição dos anos 1960 para os 70, sob o estigma do Ato Institucional número 5, a matriz de chumbo daqueles tempos difíceis.
Depois que deixamos a escola, só o vi uma vez. Cruzávamos pelo saguão do aeroporto de Congonhas. Meu primeiro impulso foi ir até ele e abraçá-lo, mas o instinto me freou. Como Leon reagiria? Poderia me plantar aquele olhar superior e arrogante, virar as costas e seguir seu caminho, depois de me conceder uns segundos de sua atenção. Ou podia me abraçar com efusão, dar tapas nas minhas costas e me permitir acompanhá-lo ao café mais próximo. Depois, cada um por si.
Leon tinha uma notável percepção das oportunidades e a explorava ao máximo. Adaptava-se como camaleão às circunstâncias para delas tirar proveito. Seu olhar estava fixado no alto, no topo, nas culminâncias sociais. Não havia dúvida: faria carreira. Qual? Naquela época não sabíamos – nem mesmo desconfiávamos. Mas não ignorávamos que, mesmo estando conosco, Leon Cakoff não era um de nós: se desprenderia do grupo tão logo alcançasse o lugar que imaginava seu desde sempre, no alto do picadeiro.
Só era ligeiramente mais velho do que a maioria de nós, mas tinha mais experiência, conhecimento da vida. Não tanto quanto sugeria com seu ar de superioridade, sua ironia e seu sarcasmo, conforme iríamos descobrir aos poucos, Mas devia influir o fato de ter vindo da Síria, onde nasceu como Leon Chadarevian. Não era o líder do grupo, mas, presumindo a superioridade que alardeava, o aceitávamos como guia ou consultor. Era distinto de nós, que formávamos uma irmandade.
A Escola de Sociologia e Política escapara ao expurgo e perseguição dos inquisidores do regime militar. Primeira instituição de nível superior na matéria, criada em 1933, ficara como instituição da USP, mas fora do campus. Na praça General Jardim, estava cercada por bares, boates, restaurantes e as reminiscências das faculdades isoladas. Os repressores a esqueceram.
Graças a isso, pôde dispor de professores para ensinar o que, aos olhos dos donos do poder, era a quintessência da subversão. Ali, ao lado da biblioteca infantil apropriadamente denominada Monteiro Lobato, tínhamos acesso a alguns itens do índex do regime, sob as vistas complacentes do muito mineiro Antônio Delorenzo Neto e do paulistano Vicente Marotta Rangel.
Tomamos conta do Centro Acadêmico, criamos um cursinho preparatório, com aulas nos altos do belo casarão onde a escola funcionava, publicamos uma revista (Difusão) e fazíamos nossa subversão nos limites do tolerado. Numa dessas manifestações, levamos panfletos que redigimos contra o voto de cabresto (pela anulação do voto como forma de protesto) para o Cine Metrópole, na linda galeria do mesmo nome, ao lado da Biblioteca Municipal Mário de Andrade.
Depois de vermos sessões seguidas do documentário sobre o festival de música de Woodstock, nos Estados Unidos, deixamos o panfleto nas poltronas e, ainda tremendo, fomos comemorar nossa ousadia num daqueles muitos botecos que nos serviam de agasalho e refrigério.
Em época ruim, péssima, de abuso e medo, éramos felizes porque fazíamos aquilo em que acreditávamos e estávamos convencidos de que assim mudaríamos o mundo para melhor. Tínhamos ideais, sonhos, utopias. Leon, sei-o hoje, tinha planos muito pessoais, que cumpriu com esmero. Era um dos mais badalados personagens da maior cidade do país e do continente.
Sua morte recolocou em contato os antigos amigos cabeludos, hoje sessentões a caminho da mais alta maturidade. Espraiados pelo espaço e pelas especialidades, mantemos um elo indissolúvel com a nossa história e as nossas esperanças. Ainda não perdemos de todo a esperança, fonte de jovialidade, que iluminava nosso rosto e nos dava certa tranquilidade para encarar a realidade hostil.
Como nessa foto, que o hoje cineasta Cláudio Kahns me mandou, batida por ele, para minha total surpresa e gratidão. Toda turma foi me levar à despedida na antiga rodoviária paulistana, uma das minas de ouro do grupo da Folha de S. Paulo, de Frias & Caldeira, no centro deteriorado da cidade. Eu partia para uma aventura: viagem rodoviária até Belém, na longínqua e estranha Amazônia da minha origem (não havia outro amazônida na escola), que provocava espanto e incredulidade entre os meus caros amigos paulistanos.
Brincávamos e sorríamos felizes. O mundo era ruim. Mas nós íamos mudá-lo – já, já.