terça-feira, 29 de outubro de 2013

Black bloc e vida cotidiana



By Renato Aroeira

A situação anda tão tensa e confusa que um pouco de espírito analítico pode ajudar. Penso em análise no sentido padrão: desconstruir, separar, distinguir, nomear, para então reunir tudo num conhecimento mais abrangente.
Há black blocs e há manifestantes, por exemplo. Nem todos os que batem e quebram são black blocs, ou melhor, seguem a tática black bloc e a eventual filosofia de vida que lhe é típica. Muitos são simplesmente revoltados, gente que quer dar um basta à vida infame que se leva na periferia ou que querem visualizar algum futuro além dos shoppings centers. Podem até existir alguns “riquinhos” que aproveitam o pique e põem prá fora seus hormônios reprimidos ou mal utilizados, mas eles seguramente são minoria.
Não se deveria abrigar sob a grife black bloc tudo o que pulsa e verte ódio. Nem resumir esse universo no conceito de fascismo ou vandalismo.
Ontem não havia black bloc na Vila Medeiros, na rodovia Fernão Dias, em São Paulo. Mas havia muita revolta, indignação, desejo de vingança, ressentimento, mágoa e medo. Havia vontade de enfrentar a polícia, certamente porque a polícia é um dos piores pesadelos das periferias urbanas, onde entra sem pedir licença e sem dialogar. Pior: matando com enorme facilidade. Foi do governador Alckmin, meses atrás, a frase trágica e estúpida: “quem não reagiu, está vivo”. Ela fixou um parâmetro para a atuação policial, de certo modo reforçou, legitimou e autorizou que se atirasse antes de saber o que se passa.
Não se precisa de tática black bloc para que se extravase o que está armazenado nos porões das periferias, que brota sem cessar do cotidiano e dos enfrentamentos brutais entre moradores e policiais, misturados com criminalidade, drogas e miséria. A desesperança é um combustível poderoso. Ela alimenta desejos de vingança, protestos difusos e imprecisos contra tudo o que representa ordem e autoridade. Porque a ordem e a autoridade que se apresentam ali são impostas, não nasceram de nenhuma construção, não são decodificadas pedagogicamente, não são de modo algum “amigáveis”.
É uma situação que afeta a todos, mas que fere de morte os mais jovens. Mata-lhes o futuro, tira-lhes a perspectiva, convida-os a fazer cálculos existenciais negativos. É por isso que são eles, os jovens, que se atiram de peito aberto contra a polícia, que queimam e destroem. Encontram assim formas de clamar por reconhecimento, de aparecer, de adquirir uma identidade que a vida lhes rouba, de exigir uma atenção que lhes é negada. Ou será que há alguma política para eles, algum braço do Estado que não seja o da polícia? A democracia faz sentido ali, produz resultados ali? Eles são palpáveis, conseguem ser compreendidos? Quem atua ali como agente da democracia?
A sociedade atual cria espetáculos e exige que se espetacularize tudo. Os jovens em geral sabem disso, estão aprendendo a agir assim. Ao bloquearem uma estrada e incendiarem caminhões, ao enfrentarem a polícia, estão também representando um papel, com o qual imaginam ser reconhecidos, ou pelo menos conhecidos. É uma forma de dizer que não aguentam mais. Uma via torta, improdutiva, contraproducente. Se ódio, raiva, ressentimento e desejo de vingança funcionassem a vida social já teria sido expurgada de toda a sua ruindade e de toda a violência que contém. Mas é uma via que precisa ser compreendida. Até para que não se ative uma espiral de violência que a ninguém beneficiará.
A tática black bloc não empolga as massas. Ela foi importada por clonagem, tem uma estética que cola no tipo de vida que temos. É uma ação de minorias para minorias e contrária às maiorias. Têm sido usados rios de tinta para falar dela e tentar explicá-la. Há quem diga que os black blocs são a vanguarda da luta contra o capital, a ala mais intransigente e violenta da contestação antissistema, aqueles que tirarão as massas do pacifismo que não perturba a ordem das coisas nem abala as instituições. Há quem veja seus seguidores como indispensáveis para a proteção das massas, pois são eles que enfrentam a violência da repressão e fazem o anteparo. Entre eles, muitos são anarquistas convictos, ou seja, têm uma ideologia e uma consciência política. Mas como se trata de uma tática, ela está aberta a muitos outros, que nenhuma ideologia possuem ou que militam abertamente por causas obscurantistas.
Da minha parte, penso que são o produto de uma vida bloqueada, sem esperança, sem utopia, individualizada e fragmentada, de uma sociedade em que a violência está institucionalizada e em boa medida entrou na corrente sanguínea, de um Estado no qual a democracia não impregna a vida política, de uma cultura que presta homenagem ao espetáculo mas não se complementa com uma ética pública consistente. Produto, em suma, das iniquidades derivadas de um capitalismo sem freios e do descontrole que afeta a vida institucional.
É uma tática que não traz consigo democracia, direitos, causas ou utopias, mas somente o fim dos tempos. Impor manifestações a partir da intimidação, do dano à propriedade e ao corpo das pessoas que não concordam com a tática é atuar para reforçar tiranias. A ideia de que a violência estatal-social é preexistente e deve ser respondida com mais violência, de que quebrar e confrontar não é uma ação, mas uma reação, uma “violência simbólica”, funciona como bálsamo justificatório para muita gente, mas não leva rigorosamente a lugar nenhum. Reforça o sistema, em vez de miná-lo.
É uma discussão antiga, difícil de ser concluída ou de gerar convergências.
A maior dificuldade que temos hoje, e a maior necessidade também, é quebrar a resistência à análise critica. Isso, em boa medida, é uma vitória da tática black bloc: como ela contém muita expressividade, convida a todos a ficarem no plano do espetáculo e aí, nesse plano, não entra a política, mas a "arte": cada um gosta ou não e poucos se preocupam em pensar em termos de consequência social, política, cultural ou ideológica. É uma tática intimidatória: quem é contra ela, mesmo que de leve, não é bem-vindo e não será ouvido. Por não ser dialógica nem reflexiva, produz encolhimento crítico inevitável.
O fenômeno por aqui fica mais complicado. Ganha uma distorção adicional. Se na Europa combate-se o capitalismo "civilizado", por aqui a "selvageria capitalista" típica dos trópicos faz com que se escondam por trás das máscaras muitos ressentidos sociais, gente com sangue nos olhos, pessoas que querem quebrar e bater não por razões políticas, mas por ódio e desejo de vingança.
Por vias transversas e improdutivas, também há um tipo de política ali, que deve ser compreendido para poder ser criticado e superado. E, reitero, para que não se ative uma espiral de violência que a ninguém beneficiará.

domingo, 27 de outubro de 2013

Repercussões, expectativas e incertezas



By William Medeiros

Outubro ganhou especial significado com a filiação de Marina Silva ao PSB e o anúncio de que se estava ali a celebrar uma aliança política de novo tipo, com a qual se alteraria o rumo da política nacional. Por agregar duas personalidades crescidas no perímetro desenhado pelo PT ao longo das últimas décadas, a anunciada aliança pareceu prejudicar mais a candidatura governista que a oposicionista. Lula, com sua conhecida sagacidade, referendou a impressão, ao dizer que recebia o anúncio da nova chapa como se fosse “um golpe no fígado” – frase que expressou uma decepção e uma confissão de que algo abalara o equilíbrio do lutador.
Os dias que se seguiram, porém, mostrariam que tudo ficaria desequilibrado. A aliança inesperada desorganizou o que parecia organizado e cercou de incertezas a disputa eleitoral de 2014. As pesquisas seguiram iguais, mas cálculos e discursos foram calibrados, especulações passaram a privilegiar outros cenários. Uma pergunta ganhou o palco: terá a aliança Eduardo/Marina gás, conteúdo e envergadura suficientes para mudar um jogo que parecia pré-definido e assentado na polarização PT vs. PSDB?
A nova coligação pegou os políticos de calças curtas, desinteressados de buscar novos recursos programáticos e retóricos de campanha, acomodados no velho ramerrame de uma polarização que soa para a opinião pública como eco antecipado daquilo que já se conhece: a mesmice, o artificialismo e a inocuidade de um discurso político saturado. Diante de uma proposição que fala em “terceira via” e em “despolarizar” o ambiente, todos tiveram de retocar a maquiagem e a se preocupar com o que dirão daqui para frente.
Esse o principal efeito, que se afirmará mesmo que Eduardo/Marina não digam nada de especial e venham a naufragar amanhã. Se, antes, ambos surgiam como coadjuvantes de uma nova corrida entre PT e PSDB, agora, unidos, invertem a situação: tornam-se protagonistas com razoável poder de fogo, seja para incomodar, forçar um distinto desfecho para o embate ou oferecer aos eleitores uma perspectiva de futuro.
O PSDB vem perdendo força e vigor já faz tempo. Tem pouca voz, quando comparado com anos anteriores. Pode ser recriado e readquirir vitalidade? Pode, mas não será fácil, pois a dinâmica eleitoral e as disputas que ela criará não favorecerão isso no curto prazo. Há excesso de espuma no partido, muitos atritos e desentendimentos, que travam uma retomada vencedora e a incorporação de ideário mais progressista, mais afinado com a socialdemocracia.
Um segundo mandato de Dilma, por sua vez, tenderá a abrir em Brasília uma estrada de acomodação em direção ao centro, seja porque o arsenal de ideias do PT está com estoque baixo, seja porque o preço que terá de ser pago para garantir Dilma II travará qualquer reformismo que vier a ser cogitado.
Ambos os partidos – carne da mesma carne, em boa medida – estão a pagar um preço alto pela teimosia em se hostilizarem reciprocamente. Funcionam como espelhos um do outro. Compõem-se com o que há de mais atrasado na cena política e, ao fazerem isso, deixam de combater o arcaísmo sociocultural que em princípio deveria ser seu pior pesadelo.
Eduardo/Marina terão de mostrar nos próximos meses que podem ser um vetor alternativo. Terão de explicitar ideias, propostas e projeto. E, sobretudo, terão de convencer o eleitor de que um novo modo de fazer política e governar é de fato possível, mantidas as atuais regras do jogo. Ocuparão espaço crescente se conseguirem demonstrar que os governos anteriores (FHC, Lula, Dilma) – sem consciência de que faziam isso e sem qualquer articulação entre eles – cumpriram um roteiro de realizações que precisam ser preservadas e que modelaram uma sociedade mais complexa e exigente, a qual deseja política e políticos melhores.
O surgimento de um terceiro polo de postulação democrática poderá ajudar a que emerja um debate mais qualificado e sereno entre vertentes de esquerda moderada, cada uma das quais com sua marca, suas virtudes, seus pecados e seus compromissos. Encerrará um ciclo em que o neoliberalismo funcionava, na retórica política, como um bicho-papão, o metro que se empregava ou para justificar opções “modernas” favoráveis ao mercado, ou para atacar os adversários de uma esquerda autoconcebida como imune ao mercado. Por ter sido assim tratado no plano discursivo, o neoliberalismo não pôde ser enfrentado e derrotado na prática, dificultando a superação dialética das conquistas do período Lula e FHC.
Resta saber como o sistema assimilará a novidade. Depois da “minirreforma eleitoral”, o cenário é desolador.
Para Marina, Eduardo, PSB e Rede, há riscos e perigos no horizonte.  Terão de mostrar que estão à altura da situação que criaram, aparar suas diferenças e avançar de fato em termos de definição programática. Precisarão modular as tentações personalistas e messiânicas, fazer com que suas diferenças ajudem a fortalecer a unidade pretendida. Somente assim conseguirão atrair, por exemplo, os 20 milhões de votos obtidos por Marina em 2010.
E há, por fim, o perigo maior, o da aliança não se traduzir institucionalmente, isto é, não ganhar densidade como ator político qualificado para vencer e governar. Nesse caso, flutuará como folha ao vento, atrairá eventuais desgarrados políticos sem encarnar numa criatura confiável, que traga consigo uma pedagogia democrática, desative a descrença na política, interpele o fascínio juvenil pela violência e cimente outro patamar de políticas públicas.
Se tais riscos forem contornados, a aliança tenderá a galvanizar parte importante do eleitorado. Poderá articular as elites políticas e as correntes democráticas mais expressivas em torno de um projeto de país, dando agenda e representação às ruas.
Porque as ruas não estão em silêncio, não deixaram de se movimentar e deverão fazer ouvir sua voz mais à frente. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 26/10/2013, p. A2].

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

O destino de cada um




Não tenho talento nem conhecimento para fazer crítica literária. Até tentei, muito tempo atrás. Foi um fiasco.
Leio muita literatura, creio que hoje em dia até mais do que livros científicos. Para mim, é impossível entender o mundo sem literatura, sem música e sem cinema. A arte nos ensina coisas indispensáveis, que não podem ser encontradas na ciência, na filosofia ou na religião. Além disso, é menos chata.
Para mim, um bom romance não se filia a gêneros, escolas ou autores. É um texto que pega pela emoção, que envolve e faz fantasiar, refletir, pensar na vida, além de apresentar o leitor a personagens emblemáticos, singulares, com os quais estabeleço um relacionamento e entabulo uma conversação.
É assim com todo mundo que gosta de ler. Mergulhar no terreno sensível e explorá-lo de modo a ultrapassá-lo.
Acabei de ler Confinados, de meu amigo João Batista de Andrade, publicado recentemente numa bela edição da Prumo, de São Paulo.
O livro faz exatamente o que escrevi acima. Pegou-me pela emoção (que aumentou porque conheço o autor e compartilhei algumas coisas com ele). Ofereceu-me um relato pungente da vida como ela é e me pôs em contato com uma galeria de personagens densos, expressivos, fascinantes. Traficantes, gente comum, intelectuais. Sua trama é paulistana – a cidade tomada pela violência, um enredo que de certo modo nos remete às ações do PCC que sitiaram a cidade em 2006. Mas o que o enredo revela é universal e flui de maneira explosiva, às vezes delirante: confusões mentais, angústia, solidão, dúvidas, medos, a luta diária pela sobrevivência e pela vida, que pulsa mais forte.
Como é cineasta e documentarista militante – autor de tantos belos filmes com a marca do “cinema de intervenção” (Doramundo, O homem que virou suco, Vlado) –, João Batista constrói sua história como um mosaico de pequenas cenas plásticas, caprichosamente costuradas entre si. Lança-nos num redemoinho de labirintos e encruzilhadas.
Seus personagens estão confinados nessa trama diabólica que não controlam nem conhecem. Vivem. Batalham. Matam, amam e morrem. Confinam-nos com eles. E ao fazerem isso nos libertam.
O final aberto do livro sugere que o destino de cada um não está pré-determinado nem pode ser escolhido unilateralmente. Chances, desvios, riscos, circunstâncias e oportunidades estão o tempo todo redefinindo rumos que pareciam definitivos. É uma aposta na liberdade. E na capacidade humana de refletir sobre a própria experiência.
Tá na abertura do livro: "Você, como um leitor especial deste romance, pode mudar tudo. Proponha, mude, mesmo para que seja para que tudo continue como está. Pois se uma pessoa pode mudar uma história, abre-se uma nova chance para a vida. Quem sabe uma pessoa possa, com um gesto, uma opinião, mudar o mundo?”.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Tendências e alternativas




O PSDB parece estar deixando de ser uma alternativa efetiva na política brasileira, seja em termos de poder e disputa eleitoral, seja em termos de projeto. Vem perdendo força e vigor já faz tempo. Pode ser recriado? Pode, mas não será fácil, pois a dinâmica eleitoral e as disputas que ela criará não favorecerão isso no curto prazo. Há muita espuma dentro do partido, muitos atritos e desentendimentos, que travam uma retomada vencedora e a recuperação ou incorporação de ideário mais progressista, mais afinado com a socialdemocracia.
Um segundo mandato de Dilma, por sua vez, tenderá a abrir em Brasília uma estrada de acomodação em direção ao centro, seja porque o arsenal de ideias do PT parece enfraquecido e sem novidades consistentes, seja porque o preço que terá de ser pago para garantir Dilma II travará qualquer reformismo que eventualmente vier a ser cogitado.
Eduardo/Marina pode ser uma alternativa? Pode, mas terá de mostrar isso nos próximos meses. Terá de por para fora o que tem de ideias, propostas e projeto. E, sobretudo, terá de demonstrar que um novo modo de fazer política e governar é de fato possível, mantidas as atuais regras do jogo.  
Os últimos 25-30 anos foram de bonança e renovação no Brasil. Nossas três décadas gloriosas, como diz meu amigo William Sodré, com uma pitada de ironia mas com o foco preciso. Avançamos, seja porque pudemos contar com governos melhores do que o padrão (FHC, Lula, Dilma), seja porque esses governos – sem nenhum consciência de que faziam isso e sem nenhuma articulação entre eles – cumpriram um roteiro de realizações que acabaram por se compor e modelar outra sociedade. A economia internacional também ajudou, diga-se de passagem. Assim como a força que o capitalismo ganhou no país, por mais paradoxal que isso possa ser.
O problema é que, apesar de todos esses avanços, a política ficou travada, em boa medida controlada pelo baronato tradicional (Sarney, ACM, Collor, PMDB) e pela indigência política e intelectual  da classe política, a velha e a nova. As regras do sistema refletiram isso, mantidas que vem sendo sem maior oxigenação. Mas as regras não mudam a qualidade da política: ela foi piorando porque os políticos e os partidos pioraram, e muito. Foram abandonados pelos cidadãos, e com isso passaram a se reportar e a se medir por seus próprios interesses como partidos e não pelos interesses de seus representados, ou da sociedade. Essa, por sua vez, se afastou da política porque a “vida líquida” criou novas dinâmicas, novas atrações e novas demandas, que o sistema não consegue decifrar.
De qualquer modo, o deslocamento do eixo para uma maior polarização entre Dilma e Eduardo/Marina poderá significar três coisas: (1) um debate mais qualificado e sereno entre duas vertentes de esquerda moderada, cada uma das quais com sua marca, suas virtudes, seus pecados e seus compromissos. (2) o encerramento de um ciclo em que o neoliberalismo funcionava como o bicho-papão da competição democrática, o parâmetro empregado ou para justificar opções  “modernas” favoráveis ao mercado, ou para atacar os adversários de uma esquerda autoconcebida como imune ao mercado. (3) a projeção para outro patamar (superação) das conquistas do período Lula e FHC.
Resta saber se haverá gás e discernimento para que o sistema assimile e aproveite essa oportunidade.