As rusgas que no correr das
últimas semanas têm turvado o relacionamento entre o governo Dilma e o PMDB,
exageros e coreografias à parte, puseram no primeiro plano o tema das coalizões
governantes.
Para que servem as maiorias que
nos últimos vinte anos têm dado sustentação a Brasília? Elas forneceram base
parlamentar aos governos do PSDB e do PT, mas não foram muito diferentes entre
si. Cumpriram funções semelhantes: dar apoio a certos planos e ações
governamentais em troca de cargos e vantagens, vistos como recursos
políticos. Por baixo do pano, porém,
sub-repticiamente e talvez sem plena consciência, trabalharam para bloquear
intenções reformadoras, travar a melhoria da gestão governamental e embaralhar a
formulação e a execução de políticas públicas.
O resultado disso é que depois
de vinte anos – período em que o país mudou bastante e melhorou em vários
setores – a situação parece congelada em áreas vitais e estratégicas: na saúde,
na educação, na infraestrutura, no transporte, na segurança. E, claro, na
política.
Nunca a política foi tão ruim.
Falta praticamente tudo nela: ideias, estadistas, lideranças, discurso, qualificação
técnica, interação com a sociedade. É quase um cenário de fim do mundo: terra
arrasada, à espera de algum herói que dê sentido e ponha ordem no caos. Difícil
localizar alguma fonte de esperança. O fato de o país ter melhorado na
sequencia do fim da ditadura militar – progressiva e lentamente a partir da
Constituição de 1988 – fornece um contraste que dramatiza a questão: como foi
possível chegarmos tão longe com a política que temos, ou que não temos?
Não se trata de culpar as
coalizões pelo que existe de ruim, mas de vê-las por ângulos mais realistas,
que sugerem, entre outras coisas, que o sistema pode estar estável, funcionar a
contento em termos de seus inputs e outputs, dar condições de governança e de
governabilidade aos governos, e mesmo assim o país não conseguir ser governado
a ponto de enfrentar com determinação e coragem seus problemas seculares e seus
déficits de eficiência e produtividade.
Coalizões fazem parte da
dinâmica política. Negociações, barganhas, composições, alianças programáticas
ou por interesse são como o sal da terra para a política. Quanto mais complexas
e diferenciadas as sociedades, mais este sal parece necessário. Num país com 34
partidos, como o Brasil, se não há convergências e aproximações nada funciona,
bate-se em ponta de faca. Especialmente quando se considera que, aqui, o
sistema político foi sendo desenhado de modo a impor as composições como
expediente de governo, estruturando o assim chamado “presidencialismo de
coalizão”. Não há como evitá-las e elas cumprem um papel não desprezível: põem
um pouco de pressão adicional sobre o Executivo – dificultando seus eventuais
apetites tirânicos – e contribuem para viabilizar certas políticas e propostas
provenientes dos governos. A estabilização monetária, a rotina democrática e a
melhoria na distribuição da renda são exemplos emblemáticos disso.
Mas não se deveria apostar às
cegas em coalizões, como se a mera existência delas garantisse automaticamente
o sucesso. Coalizões sem eixo, sem densidade programática, movidas por
interesses eleitorais ou pela vontade de se eternizar no poder transferem pouquíssima
virtude aos governos. Sem clareza – eixos programáticos, planos, ideias – e sem
coordenação inteligente, coalizões podem ser paralisantes: podem estragar
partidos e viciá-los no escambo, tirar energia dos governos, dizimar talentos
políticos, impedir a participação social. Terminam por arrastar governos,
partidos e parlamentos para a mesmice, fazendo com que a “pequena política” sufoque
a “grande política” e a impeça de respirar.
Por isso, quando o governo
Dilma e o PMDB passam de “aliados incondicionais” a irmãos inimigos, exibindo
ao país a mediocridade dos interesses eleitorais – ora jogando para a plateia,
ora aumentando o preço de certos apoios, mas sempre com base na ausência
completa de substância –, não podemos nos surpreender, mas devemos nos
interrogar: como foi possível ter chegado tão longe? Até quando as coisas
seguirão assim, indiferentes às dinâmicas e às expectativas sociais,
aprisionadas pelas grades de um sistema que funciona mas não produz vantagem
para a sociedade, nem para o Estado?
Como bem observou o analista
político Carlos Melo em artigo ("Consensos negativos") publicado no
caderno Aliás no dia 16/03, “o
sistema assumiu uma lógica própria, funcionando, basicamente, para si mesmo”. Os
que estão no jogo não parecem integrados à sociedade: falam em nome dela, mas não
a representam de fato. Batem-se pelos próprios interesses e cálculos,
manuseando recursos públicos como se fossem donos deles, sem visão social mais
generosa. Roubam-se pedaços de poder uns dos outros – um poder discutível,
porque de baixa repercussão social positiva, mas com o qual se vencem eleições.
Só circunstancialmente processa-se a mágica que aproxima Estado e sociedade.
A época atual se mostra hostil
à reprodução desse esquema. É ágil, dinâmica, pede respostas rápidas, busca a
transparência. Está a criar o tempo todo instituições de novo tipo, que trazem
consigo traços de um futuro que não seja mero prolongamento passivo do
presente. Não desautoriza coalizões e busca de maiorias governantes, até porque
intui que elas são indispensáveis. Mas está à espera de novas modalidades de deliberação
política e de governo.
As coalizões que vêm sendo
mantidas nas últimas décadas no Brasil não caminham nessa direção. Deveriam
todos começar a pensar nelas com maior rigor. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 22/03/2014, p. A2].