quarta-feira, 26 de março de 2014

A falta que faz um bloco social-democrático

Still dreaming, by Vikas Sinha
Se olharmos para o Brasil com uma grande angular, não é difícil reconhecer que do impeachment de Collor (1992) para frente estendeu-se um longo ciclo destinado a consolidar o capitalismo no país. Digamos assim: ao longo dessas duas décadas e meia construiu-se por aqui uma sociedade capitalista mais pujante e em certa medida mais estável e equilibrada.
Do combate à inflação e das medidas voltadas para estabilizar a moeda (governos FHC) às políticas favoráveis a que se ampliassem a inclusão social e o consumo popular (governos Lula/Dilma), a ação governamental impulsionou o capitalismo. Houve muito, também, de exigências e imposições da época: a globalização do capitalismo foi real, não se reduziu a mera palavra-de-ordem, e quem não se ajustou a ela de certo modo pereceu, ou perdeu oportunidades.
O impulsionamento do capitalismo no Brasil, assim como em outros países, fez-se em nome do mantra do desenvolvimento, do crescimento econômico, sem maiores considerações pela sustentabilidade, a não ser em termos retóricos. Era preciso crescer, para assim projetar o país no mundo e criar empregos, sem os quais as políticas sociais não se viabilizariam.
É uma história longa, complexa, cheia de sinuosidades e contradições. Na barafunda de suas determinações e particularidades, no entanto, um vetor se ressalta: PSDB e PT foram parceiros de uma grande operação macroeconômica, política e social. Foram gestores específicos de uma mesma construção, ainda que sem terem plena consciência disso (quero crer) e sem terem feito qualquer combinação explícita, que foi substituída por uma retórica belicosa e simplificadora, praticada por ambas as partes.
Isso não significa que não tenham existido diferenças entre os dois subciclos governamentais: FHC (1994-2002) e Lula/Dilma (2003-2014). Foram importantes as apostas, as ênfases: reforma administrativa do Estado, medidas privatizantes e busca de racionalização nos gastos sociais durante o primeiro; ampliação de programas e políticas de inclusão social e maior diálogo com movimentos sociais durante o segundo. Mas também é preciso reconhecer que medidas tomadas por um dos governos não poderiam ter sido tomadas pelo outro, seja porque foram distintas as circunstâncias objetivas, seja porque não havia um suficiente encadeamento cumulativo das medidas praticadas. (Não seria possível, por exemplo, ser generoso em políticas sociais com uma economia hiperinflacionada.)
As distinções, porém, não deveriam prejudicar o reconhecimento de que PT e PSDB deram-se as mãos para alavancar o capitalismo no Brasil.
Podemos não gostar disso. Mas creio que estamos obrigados a admitir que o capitalismo assim construído possibilitou a que o país melhorasse em muitas áreas, se convertesse em subpotência regional e em importante player no sistema internacional de Estados.
O problema é que essa modalidade de construção não facilitou o avanço em outras áreas vitais e estratégicas. Estão aí a saúde, a educação, a infraestrutura, as cidades, a segurança para provar o quanto faltou para aquela construção poder ser considerada bem-sucedida.
Muita coisa poderia ter sido feita para completar e arredondar o capitalismo por aqui, quem sabe preparando a sociedade para conceber outro modo de produção e de organização econômico-social, outra cultura cívica, outra maneira de pensar a convivência. Privilegio uma: se PSDB e PT tivessem cooperado mais, tivessem moderado seus apetites por poder e protagonismo e estabelecido linhas mais claras e vigorosas de continuidade entre suas políticas – se algo assim tivesse acontecido, daria para dizer que o capitalismo estaria hoje mais forte e socialmente mais justo.
Como muitas pessoas, não gosto do capitalismo, com seus “moinhos satânicos” e sua voracidade produtivista. Mas é nele que vivemos e o mínimo que podemos almejar é saber governá-lo, reformá-lo, impedi-lo de violentar a sociedade.
Pelo menos nas últimas décadas, o capitalismo que se afirmou no Brasil não foi uma escolha dos governantes: eles foram obrigados a abrir espaços para o capital, o mercado, os bancos, o consumismo, quando muito interferindo para regular e “socializar” um pouco mais.
Se convergências entre os dois pilotos (PSDB e PT) tivessem havido no lugar da insana batalha que protagonizaram entre si, poderíamos ter nos beneficiado da formação de um bloco socialdemocrático no país. As coisas teriam sido certamente melhores.
Sei bem que tudo isso é wishfull thinking e narrativa histórica. Não serve para que projetemos o futuro, especialmente em um ano eleitoral, no qual todas as simplificações maniqueístas e verborrágicas tenderão a emergir e a dominar o cenário. Mas não custa dar relevo ao que poderia ter sido feito.
O tempo para ajustes e articulações políticas (em moldes de grande política) encolheu, mas ainda existe.

sábado, 22 de março de 2014

Maiorias paralisantes

As rusgas que no correr das últimas semanas têm turvado o relacionamento entre o governo Dilma e o PMDB, exageros e coreografias à parte, puseram no primeiro plano o tema das coalizões governantes.
Para que servem as maiorias que nos últimos vinte anos têm dado sustentação a Brasília? Elas forneceram base parlamentar aos governos do PSDB e do PT, mas não foram muito diferentes entre si. Cumpriram funções semelhantes: dar apoio a certos planos e ações governamentais em troca de cargos e vantagens, vistos como recursos políticos.  Por baixo do pano, porém, sub-repticiamente e talvez sem plena consciência, trabalharam para bloquear intenções reformadoras, travar a melhoria da gestão governamental e embaralhar a formulação e a execução de políticas públicas.
O resultado disso é que depois de vinte anos – período em que o país mudou bastante e melhorou em vários setores – a situação parece congelada em áreas vitais e estratégicas: na saúde, na educação, na infraestrutura, no transporte, na segurança. E, claro, na política.
Nunca a política foi tão ruim. Falta praticamente tudo nela: ideias, estadistas, lideranças, discurso, qualificação técnica, interação com a sociedade. É quase um cenário de fim do mundo: terra arrasada, à espera de algum herói que dê sentido e ponha ordem no caos. Difícil localizar alguma fonte de esperança. O fato de o país ter melhorado na sequencia do fim da ditadura militar – progressiva e lentamente a partir da Constituição de 1988 – fornece um contraste que dramatiza a questão: como foi possível chegarmos tão longe com a política que temos, ou que não temos?
Não se trata de culpar as coalizões pelo que existe de ruim, mas de vê-las por ângulos mais realistas, que sugerem, entre outras coisas, que o sistema pode estar estável, funcionar a contento em termos de seus inputs e outputs, dar condições de governança e de governabilidade aos governos, e mesmo assim o país não conseguir ser governado a ponto de enfrentar com determinação e coragem seus problemas seculares e seus déficits de eficiência e produtividade.
Coalizões fazem parte da dinâmica política. Negociações, barganhas, composições, alianças programáticas ou por interesse são como o sal da terra para a política. Quanto mais complexas e diferenciadas as sociedades, mais este sal parece necessário. Num país com 34 partidos, como o Brasil, se não há convergências e aproximações nada funciona, bate-se em ponta de faca. Especialmente quando se considera que, aqui, o sistema político foi sendo desenhado de modo a impor as composições como expediente de governo, estruturando o assim chamado “presidencialismo de coalizão”. Não há como evitá-las e elas cumprem um papel não desprezível: põem um pouco de pressão adicional sobre o Executivo – dificultando seus eventuais apetites tirânicos – e contribuem para viabilizar certas políticas e propostas provenientes dos governos. A estabilização monetária, a rotina democrática e a melhoria na distribuição da renda são exemplos emblemáticos disso.
Mas não se deveria apostar às cegas em coalizões, como se a mera existência delas garantisse automaticamente o sucesso. Coalizões sem eixo, sem densidade programática, movidas por interesses eleitorais ou pela vontade de se eternizar no poder transferem pouquíssima virtude aos governos. Sem clareza – eixos programáticos, planos, ideias – e sem coordenação inteligente, coalizões podem ser paralisantes: podem estragar partidos e viciá-los no escambo, tirar energia dos governos, dizimar talentos políticos, impedir a participação social. Terminam por arrastar governos, partidos e parlamentos para a mesmice, fazendo com que a “pequena política” sufoque a “grande política” e a impeça de respirar.
Por isso, quando o governo Dilma e o PMDB passam de “aliados incondicionais” a irmãos inimigos, exibindo ao país a mediocridade dos interesses eleitorais – ora jogando para a plateia, ora aumentando o preço de certos apoios, mas sempre com base na ausência completa de substância –, não podemos nos surpreender, mas devemos nos interrogar: como foi possível ter chegado tão longe? Até quando as coisas seguirão assim, indiferentes às dinâmicas e às expectativas sociais, aprisionadas pelas grades de um sistema que funciona mas não produz vantagem para a sociedade, nem para o Estado?
Como bem observou o analista político Carlos Melo em artigo ("Consensos negativos") publicado no caderno Aliás no dia 16/03, “o sistema assumiu uma lógica própria, funcionando, basicamente, para si mesmo”. Os que estão no jogo não parecem integrados à sociedade: falam em nome dela, mas não a representam de fato. Batem-se pelos próprios interesses e cálculos, manuseando recursos públicos como se fossem donos deles, sem visão social mais generosa. Roubam-se pedaços de poder uns dos outros – um poder discutível, porque de baixa repercussão social positiva, mas com o qual se vencem eleições. Só circunstancialmente processa-se a mágica que aproxima Estado e sociedade.
A época atual se mostra hostil à reprodução desse esquema. É ágil, dinâmica, pede respostas rápidas, busca a transparência. Está a criar o tempo todo instituições de novo tipo, que trazem consigo traços de um futuro que não seja mero prolongamento passivo do presente. Não desautoriza coalizões e busca de maiorias governantes, até porque intui que elas são indispensáveis. Mas está à espera de novas modalidades de deliberação política e de governo.

As coalizões que vêm sendo mantidas nas últimas décadas no Brasil não caminham nessa direção. Deveriam todos começar a pensar nelas com maior rigor. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 22/03/2014, p. A2].

quarta-feira, 12 de março de 2014

Trepidações planaltinas


O Planalto continua a trepidar. Raiz: pressões por ajustes e conquista de espaços na coalizão governista tendo em vista as eleições e a perspectiva de um novo mandato para Dilma.
O PMDB engrossou a voz. Não irá por certo abandonar o barco. Tem muito mais a perder do que a ganhar com uma eventual saída da coalizão. Mas sabe usar como poucos a arma da ameaça. Tem feito isso desde que deixou de ser esteio da luta democrática no país, lá por volta do fim da Constituinte.
Nas últimas semanas, costurou um bloco independente no Congresso, ontem impôs derrota ao governo numa votação. Morde-e-assopra o tempo todo. Impulsionada pelo líder Eduardo Cunha, a bancada do partido na Câmara anunciou "independência" em relação ao governo e decidiu que apoiará a convocação da Executiva Nacional da legenda para "reavaliar" a atual aliança com o PT. Enquanto o líder diz que "discutir" não significa necessariamente romper com o PT, outros parlamentares, como o deputado Sandro Mabel (PMDB-GO), por exemplo, falam a torto e a direito que "80% da bancada quer o rompimento".
Nitroglicerina. No mínimo, desafio e obstáculo a ser ultrapassado pelo governo. 
No primeiro momento, a presidente mostrou indiferença: "O PMDB só me dá alegria", declarou para enfatizar que não há crise à vista. Faz parte do jogo. Mas o PMDB está mesmo esticando a corda.
Em nota divulgada ontem, a bancada declarou ter aprovado “moção de  apoio e irrestrita solidariedade ao líder reeleito Eduardo Cunha, vítima de agressões despropositadas do PT que, em verdade, atingiram frontalmente a bancada e o próprio PMDB, já que as posições externadas pelo líder refletem a posição da bancada”.
Nessa operação, o partido vale-se da força derivada do fato de ser a segunda maior bancada da Câmara (75 deputados, antecedida pelo PT com 87) e de sua capilaridade nacional, o que faz o PMDB ter presença em praticamente todas as alianças regionais, o que lhe dá poder  para barganhar cargos ministeriais. Hoje o partido comanda 5 ministérios, e acha pouco.
Houve alguma falha na conduta tática de Dilma seja na questão das alianças regionais para a eleição seja na reforma ministerial. Como ela não se mostra disposta a dar mais espaço para os peemedebistas, não gosta de conversar com políticos e age de modo técnico e gerencial, os aliados ficam atiçados e põem suas armas e suas reivindicações na mesa.
Parte das vozes que nos últimos tempos vem pedindo “volta, Lula” tem a ver com isso. A gritaria já foi mais forte, mas ainda ressoa. Não deverá crescer, mas a tendência é que fique a latejar incomodamente.
No caso específico do PMDB, há uma tentativa de se desvincular da imagem do partido apetitoso, interessado em cargos. Suas lideranças tentam a todo momento desmentir isso. Ninguém acredita. Mais interessante é avaliar a movimentação como recurso para aumentar a força do partido (e dos interesses sociais que representa) na montagem da coalizão governista: um ator interessado em disputar a hegemonia com o PT no interior dela.
Preço que se paga. Quanto mais o PT fixar seu projeto na esfera do poder e não na sociedade, mais atrairá problemas deste tipo.

sábado, 1 de março de 2014

Com Lula ou com Dilma, a ventania seguirá


Charge de Amarildo

Sendo verdade que onde há fumaça há fogo, devemos ter dias trepidantes na cena política nacional no que diz respeito ao candidato que disputará as presidenciais pelo PT. 
O nome oficial continua a ser o de Dilma, que ainda surfa em bons índices de popularidade. Mas são muitos os indícios de que, nos bastidores, há quem lute por um retorno de Lula ao palco.
A impressão é de fogo de palha, mas a fumaça é espessa. Dilma desconversa, diz que está tudo bem, que nunca houve divergências, “a não ser as normais”. Lula demonstra preocupação e não se cansa de observar que Dilma é teimosa demais. Os desmentidos acrescentam pouco, não alteram as especulações.
Não conheço o argumento dos que defendem essa solução. Mas imagino por onde ele passa. Não se trata de medo de perder o poder, mas de medo de não se conseguir de volta as vantagens e as facilidades que se tinha com Lula. Não é a esquerda ou militantes petistas que pedem o retorno do ex-presidente, mas empresários, banqueiros e aliados da base governista, a começar dos peemedebistas. O que eles querem, antes de tudo, é ganhar massa muscular para pressionar Dilma e conquistar mais posições de força na próxima gestão, em nome do fortalecimento do pacto que vem sustentando os governos petistas desde 2002. Querem, também, deixar claro que não confiam na oposição, que não estão dispostos, ao menos por agora, a cerrar fileiras contra o governo.  Por via indireta, dizem que a oposição é fraca, não tem programa e suas lideranças ainda são pouco expressivas. Está muito aquém do que seria necessário para vencer uma eleição.
Os “sebastianistas” sugerem, portanto, que estão a fazer um movimento de renegociação de apoios. Com Dilma, o movimento encontraria dificuldades e os empurraria para perto da oposição. Lula descongestionaria, abriria novos espaços e daria novo fôlego a tudo.
A ação supõe que Lula, animal político por excelência, gerenciaria com mais competência as relações Estado-sociedade, acalmando tanto a movimentação social quanto o desarranjo e a pressão político-institucional, o que Dilma não tem conseguido fazer. É uma preocupação com o déficit de articulação e coordenação política que se evidenciou no país.  Preocupação, também, com o aumento dos riscos que decorreriam da continuidade da atual situação: riscos para a estabilidade econômica, a intermediação política, a continuidade das reformas, os arranjos político-sociais estruturados desde 2002 e, evidentemente, riscos para os negócios. Sem a resolução desse déficit, ficaria abalado o pacto informal entre as grandes empresas nacionais e multinacionais, os bancos, o agronegócio e a grande agricultura, a política tradicional e parte dos interesses organizados do mundo do trabalho.
A aposta é que Lula tem personalidade, estilo e biografia para caminhar nessa direção. Quer dizer, reuniria trunfos importantes para tentar um resgate daquilo que fez a fortuna de seus dois governos, atualizando-os à nova fase do país.
O problema maior é que precisamente por ter muita sagacidade e talento (além de muito capital político), Lula deve estar pensando se vale a pena entrar na disputa agora e por essa porta, ou seja, esparramando sangue interno. Ele precisaria sacrificar Dilma, o que não é fácil nem propriamente dignificante. E precisaria concorrer num quadro que não se mostra tão tranquilo assim, ou seja, no qual teria tantas possibilidades de vitória glorificadora, quanto de derrota.
A pergunta que fica é se basta um bom timoneiro para que o navio singre os mares. A qualidade da nave e da marujada também pesa, e quase sempre de modo categórico. O mesmo vale para a cartografia que orienta o capitão: um mapa malfeito, desatualizado ou imperfeito pode levá-lo na direção de rochedos implacáveis ou deixá-lo à deriva. No caso da política, o mapa é aquilo que costumamos chamar de projeto. E ele não existe de modo claro e suficiente.
Conclusão: com Lula ou com Dilma, a ventania seguirá firme pelas bandas do Planalto.