Não foram somente o 15 de
março, a demissão do ministro Cid Gomes, a queda vertiginosa dos índices de
popularidade da Presidente e o documento-bomba da Secretaria da Comunicação
Social, mas estes acontecimentos e o cruzamento diabólico entre eles deram o
tom da chamada conjuntura política das últimas semanas. Chacoalharam o governo
Dilma, aumentaram os desencontros em seu interior e lançaram uma perturbadora
interrogação sobre o que serão seus próximos quatro anos.
O governo Dilma, porém, não
acabou e seria um erro dar como favas contadas que não terá como se recuperar.
Ficou mais difícil, mas não impossível.
Se o 15 de março e a queda de
popularidade mostraram que a resistência social ao governo está se convertendo
em fato político, os outros dois acontecimentos revelaram um governo com demasiados
problemas internos, desorientado e carente de articulação.
Um governo sem rumo e sem
unidade torna-se produtor de problemas, não de soluções. Ter um governo assim
logo no início de um período governamental é algo que excita seus adversários e
alimenta a crise. Mostra, por exemplo, que não há plano de voo e que não se
pode saber quem apoia a Presidente e quem lhe faz oposição. Turvam-se as águas,
aumenta a confusão. As próprias forças tidas como sustentáculo governamental –
o PT e o PMDB – se dessolidarizam e ficam, cada uma a seu modo, fazendo somente
o próprio jogo, sem sincronia com o Palácio do Planalto. Fazem contas para
saber como evitar os respingos da crise. Passam a olhar para as eleições
municipais de 2016, ao passo que a Presidência precisa olhar para o dia-a-dia e
para 2018.
PT e PMDB podem até fazer juras
recíprocas de amor, falar bem de Dilma em público, mas por trás do pano agem de
forma defensiva, terminando por produzir desgastes e contrapontos. Não é
somente Eduardo Cunha, este presidente da Câmara que opera sem pudor em favor
dos próprios interesses, age corporativamente e consegue se fortalecer mesmo cercado
de suspeitas, mostrando ser um animal político difícil de enfrentar. É ele, com
certeza, mas também é o PMDB como um todo e parte importante do Congresso
Nacional.
O caso Cid Gomes chamou atenção
pela incandescência e pelo baixo nível. O ex-ministro fez seus cálculos. Não
queimou munição à toa, num ímpeto de descontrole emocional. Quis sair de dedo
em riste, como aquele que confrontou os que “achacam” a República. Jogou para
uma parte da plateia, que não suporta os políticos atuais. O episódio foi
péssimo tanto para o Planalto quanto para a imagem do Parlamento e deixou
patente que falta graxa nas relações entre os poderes da República, que não há
qualidade no ministério, que o Legislativo é hoje uma bomba que explode a
intervalos regulares, sem que haja quem a desarme. Os pedaços do Congresso que
desafiam a Presidência deitam e rolam na mesma proporção que os demais pedaços
não se movimentam.
O documento da Secom – divulgado
pelo O Estado de S. Paulo dias atrás –
foi sintomático. Podemos deixar de lado suas impropriedades (a confusão entre
governo e partido, por exemplo) e ficar somente com o que disse a respeito do
“caos político” que estaria a ser fomentado pela inação governamental. Segundo
o texto, “o governo e o PT passaram a só falar para si mesmos”. Foi um
diagnóstico duro, incômodo, chega a ser surpreendente que tenha chegado ao
grande público. O ministro responsável pelo texto se demitiu, mas o estrago se
espalhou. O presidente do PT, Rui Falcão, fez crescer o vespeiro, ao propor que
o governo corte a verba de publicidade destinada a veículos de comunicação que
“apoiaram e convocaram” as manifestações.
O 15 de março ajudou, de forma ruidosa
e polifônica, a descortinar a desconexão entre o Palácio e as ruas. Diante
dele, o governo falhou duplamente. Errou ao responder por dois porta-vozes que
não conseguiram expressar a gravidade do momento, como se ao governo fosse
indiferente o protesto, e errou na análise do fato.
Nem ele, nem seus apoiadores,
parecem entender o que está acontecendo com as ruas do País de 2013 para cá.
Não decodificaram as vozes que se manifestaram ostensivamente contra a Presidente
agora em 2015. Optaram por tentar deslegitimar a manifestação, convertendo as
pessoas em massa de manobra da “elite branca” e da “mídia golpista”. Pior que
isso, não conseguem explicar porque a “direita” mostra hoje tanto vigor, a
ponto de fazer inveja à “esquerda”. Aceitam com incrível facilidade a tese de
que os “ricos” têm “ódio” de Dilma e do PT. Estão congelados na mesmice
adjetivada, repetindo que a parte (as faixas pedindo intervenção militar)
explica o todo, que o 15 de março fez lembrar a Marcha com Deus pela Liberdade
de 1964. Querem banalizar a multidão, mas só fazem irritá-la.
As ruas não se movem por utopias
substantivas, não têm um programa com que lutar. São contra Dilma, políticos e
partidos. Não são a favor de nada. Exprimem uma gigantesca insatisfação social
com a política, processo em que se misturam indignação, ressentimentos e
frustração.
Mas pau que bate em Chico
também bate em Francisco. Não é só o governo que está à deriva, mas o País todo,
o sistema político tal como em funcionamento. Hoje, o que prejudica o governo
não beneficia a oposição a ele. Não há partidos, núcleos democráticos
articuladores ou dirigentes políticos a lucrar com a crise, fato que faz o
quadro ficar ainda pior. Quem fala pela oposição? O que faz ela, qual seu
programa de ação? Se há bons nomes para liderar os que se opõem ao governo, por
que não assumem o primeiro plano e se apresentam para “salvar” a República?
A resposta provável talvez nos
ajude a relativizar a situação. Os lideres oposicionistas não se projetam pelas
mesmas razões que fazem a Presidência sangrar a céu aberto: porque não dispõem
de nexos com as correntes vivas da sociedade. É aí, nesta praga maior do
capitalismo líquido e globalizado, que reside o maior desafio. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 28/03/2015, p.
A2].